setembro 11, 2004

Morte e Salvação (IV)

VII
Tenho a impressão de que voltei a sentir aquele cheiro a enxofre e humidade em casa de Emílio, quando Mary Ann morreu, mas no meio de tantos cheiros nauseabundos que pairavam aquela casa, que mais parecia um hospital, não tenho bem a certeza.
Num espaço de dois meses tinham ocorrido duas mortes, bastante significativas para mim. Mas isto não era nada, era só o princípio.
Meses depois reinava novamente a calma. Era a época morta da imprensa, parecia que todo o mundo andava em paz. Todos viviam as suas vidas com calma, todos menos Jack que, infelizmente, tinha muito trabalho na televisão. Jack andava cansado, tinha muito pouco tempo para descansar, chegava a dormir só duas horas por dia e às vezes passava três dias sem dormir.
Uma noite, eu e Emílio, convidámo-lo para ir ao cinema, mas ele rejeitou.
— Desculpem-me, mas hoje não estou com disposição para isso. Sinto-me mal. Não sei o que tenho. Fico cansado só de me levantar e ir até à cozinha, nunca me aconteceu isto.
— Não faz mal. — disse eu — Até te vai fazer bem ficar em casa a descansar.
— Eu vou ver se consigo dormir um bocado. De qualquer maneira passem por aqui no final do filme.
Emílio e eu fomos ver o filme O Inferno / L’Enfer de Claude Chabrol. No final do filme chovia torrencialmente por isso, ainda fomos até um café, onde ficamos a conversar um bocado.
De regresso a casa, passamos pela casa de Jack. Logo à porta da casa de Jack, Emílio encontrou uma colega dele.
— Emílio, — disse eu — eu vou subindo para ir falando com Jack.
— Está bem! Eu já lá vou ter, não me demoro nada.
Fui subindo devagar, enquanto me secava, as escadas que davam até à casa de Jack. Ao chegar lá cima, estranhei a porta estar aberta. Mal entrei senti, novamente, um forte cheiro a enxofre e a humidade. Assustado corri até à sala onde encontrei Jack caído no chão, morto. A sua cara não mostrava sofrimento, mas as suas mãos estavam angústiamente agarradas ao seu peito. Ajoelhei-me à beira dele e tentei ver se ele ainda estava vivo. Tinha ainda os olhos abertos, a sua boca tinha espuma e o seu corpo ainda estava quente. Quando me levantei, para chamar Emílio, olhei para um canto da sala e Vi-a. Ela estava mesmo ali à minha frente a olhar para mim. Nunca tinha visto a Morte de frente, ao princípio assustei-me, mas depois tive uma sensação de calmia e paz. Não Lhe conseguia ver o rosto, só quando Ela se aproximou de mim é que Lhe consegui ver o rosto. Não se pode dizer que era um rosto belo, muito pelo contrário, era um rosto soturno e sombrio.
— Estamo-nos sempre a cruzar. — disse Ela, numa voz arrepiante e cavernosa — Nunca te esqueças de que ando sempre ao teu lado.
Estava tão perplexo a olhar para Ela que não consegui dizer palavra, mas eu queria perguntar-lhe: «Porquê? porque é que foi Jack? Não podia ser outro? Porquê?». Não me saiu nada. A Morte deve ter lido o meu pensamento e respondeu:
— Ele foi porque assim estava destinado. — e, com um movimento da foice, desapareceu.
Nesse mesmo instante entrou Emílio na sala.
— O que é que foi? — perguntou ele, olhando, assustado, para o corpo de Jack — O que é que se passou? William? William? Acorda!! — acordei do meu transe e olhei para Emílio — Ele está morto?
— Está, Emílio. Está! — e, pela primeira vez, correram algumas lágrimas no meu rosto. Nunca tinha chorado pela morte de alguém — A Morte veio buscá-lo e já foi embora. Ele foi porque assim estava destinado.
Não sei muito bem porque é que disse aquilo, saiu-me.
Emílio foi, então, chamar uma ambulância, enquanto eu fui fechar os olhos de Jack. Quando a ambulância chegou ainda estava eu sentado no chão a olhar para Jack.
Três dias depois decorreu o funeral e o respectivo enterro de Jack. Após o funeral eu e Emílio decidimos tirar umas férias, para descontrair e reflectir sobre as nossas vidas. Tinham sido muitas mortes consecutivas e, tanto eu como Emílio, estávamos a precisar de um descanso moral.
...
Devo confessar que a morte de Jack me abalou muito. O mais estranho de tudo foi aquele encontro insólito com a Morte. Porque será que ela falou comigo? Porque é que fui incapaz de falar com Ela? Porque será que me senti calmo e sereno ao pé Dela, como se estivesse à beira de alguém com quem tenho uma grande amizade e afeição? Porquê?
Volto ao princípio, muitas perguntas, nenhuma resposta.
...
Logo na semana a seguir ao funeral de Jack, Emílio, Julie e eu fomos até ao México, local calmo onde podíamos relaxar calmamente. Tínhamos tirado um mês de férias, tempo suficiente para esquecermos os nossos problemas.
O México era uma terra bonita e os mexicanos eram muito simpáticos connosco. Ficamos instalados num hotel no centro da Cidade do México.
Emílio conhecia bem o México por isso, levou-nos a visitar os templos Incas, incluindo o famoso Templo do Sol, e todas as outras coisas fantásticas que o México proporciona e, rapidamente, esquecemos os problemas que nos tinham levado àquela viagem.
Quase no final das férias decidimos fazer umas compras no centro da cidade. A meio da tarde fomos até uma esplanada, onde ficamos a descansar.
— Compraste muita coisa Emílio? — perguntou Julie — Nós fartamo-nos de comprar.
— Ainda comprei algumas coisas. Uma pessoa perde-se no meu meio de tanta coisa bonita. Tenho sempre que me controlar para não comprar tudo.
— Pareces mesmo uma pessoa que eu conheço — disse eu, olhando de lado para Julie.
— Até parece... — disse Julie irritada.
— William, eu vou ao hotel buscar dinheiro. — disse Emílio — Eu apanho o autocarro e em dois minutos estou lá.
— Está bem! Não demores.
Eu e Julie ficamos a ver Emílio na paragem, que era mesmo em frente à esplanada. Como aquela paragem era a principal do centro da cidade estava bastante pessoal à espera do autocarro.
Quando o autocarro chegou, a confusão gerou-se. As pessoas passavam à frente umas das outras, empurravam, espezinhavam, chutavam, enfim, uma total anarquia. Emílio com algum custo lá conseguiu entrar.
O autocarro tinha andado poucos metros quando se deu um estrondo enorme! Olhei de repente para o autocarro e vi este a arder. Grandes labaredas saiam do autocarro, que se tinha transformado numa enorme bola de fogo.
O pânico gerou-se rapidamente, as pessoas fugiam, gritavam, desmaiavam. Eu fiquei estupefacto a olhar para o autocarro, Julie olhava, também, incrédula. Senti de repente um forte cheiro, que eu bem conhecia, olhei para o outro lado da rua e Vi-a. A Morte estava mesmo em frente a mim, olhou--me nos olhos e sorriu. Avançou em direcção ao autocarro e desapareceu no meio das chamas.
Logo de seguida chegaram os bombeiros e a polícia. Apagaram as chamas com alguma rapidez e procuraram ver se havia sobreviventes. Coisa que rapidamente declararam ser impossível. Todos os corpos encontravam-se carbonizados sendo impossível reconhecer algum deles.
A polícia pediu alguns testemunhos às pessoas e abriu um inquérito, alegando que possivelmente se tratava de um atentado.
Julie e eu afastámo-nos do local e fomos até ao hotel. Três dias depois fomos assistir à cerimónia fúnebre celebrada em nome de todos aqueles que morreram no atentado. E no dia seguinte deixamos o México.
VIII
Quando já pensava que tudo tinha acabado, a Morte apareceu novamente para levar mais um amigo meu. Porquê? Porque é que a Morte aparecia sempre ao meu lado? Porque é que Ela olhava sempre para mim? Porque é que tinha a sensação que já a conhecia?
Já está a anoitecer. Acendo as velas, releio aquilo que já escrevi e tento encontrar alguma explicação para tudo o que aconteceu. Por enquanto nada, mas sinto que estou perto. Sinto que falta muito pouco para descobrir tudo.
Passaram-se algumas semanas depois da morte de Emílio. O nosso país andava em revolução, a população tinha-se revoltado contra o presidente e gerou-se um motim. Toda a população estava em guerra com o governo e as forças policiais.
A mim coube-me fazer a reportagem da revolução. Andava de um lado para o outro procurando os sítios onde a guerra estava mais quente.
Esta revolução durou algumas semanas, sempre com grande vantagem para o povo. Eu, é claro, estava do lado do povo, mas como repórter, tinha de me abster e ser imparcial, não podia demonstrar os meus ideais.
Certo dia, já na recta final da revolução, estava eu no centro a fazer a reportagem, quando vi a Julie.
— Julie! — chamei — Que estás tu aqui a fazer?
— Sai agora do escritório. — disse Julie — Não me estou a sentir bem.
— Está bem, mas não podes ficar aqui muito tempo. Isto está muito instável pode estourar a qualquer momento.
— Não te preocupes. Eu vou-me já embora!
De repente, uma força policial entra na praça, a população, revoltada, começa a atirar contra a polícia, que responde também com balas. Bombas, gases, tiros, metralhadoras, passavam de um lado para o outro. Grande confusão foi gerada. Nesse instante a polícia, num ataque súbdito, disparou contra a população. Protegi-me entre os prédios para não ser atingido. Gritos de dor, de medo, de angústia e de raiva ecoavam por todo o lado.
De repente lembrei-me de Julie. Onde estaria ela? Olhei por entre os prédios e vi ela a fugir. Corria, perdida, sem saber para onde ia. A polícia disparava para todos os lados e com uma rajada de metralhadora atingiu Julie, que cai no chão de joelhos.
NÃÃÃÃÃÃOOOOO!!!!!!!!!! — gritei eu. — Filhos da puta!!!!
Corri desenfreadamente para ela. Amparei-a nos meus braços, ela ainda respirava, olhou para mim sorriu, disse-me que me amava e morreu. Furiosamente peguei numa arma que encontrei junto a um morto e disparei contra o polícia que tinha disparado contra Julie. Descarreguei todos os tiros que tinha na arma. Pouco depois, a polícia bateu em retirada, fugindo da população que tinha ganho esta batalha.
Fiquei ali à beira de Julie, olhando para ela, chorando. Chorava de dor, uma dor aguda que é inexplicável.
— Voltámo-nos a encontrar! — disse uma voz, por trás de mim.
Eu conhecia aquela voz, aquele cheiro a enxofre e humidade. Sim, era Ela! Voltei-me, a Morte estava mesmo ali, ao meu lado. Levantei-me e perguntei:
— Ainda não chega?? Quando é que acaba com estas mortes?? Quando é que acaba???
— Calma! Como tu sabes eu estou sempre ao teu lado, por onde quer que vás, aonde quer que vás. A tua missão está a chegar ao fim. Quando quiseres ir chama por mim e eu venho buscar-te.
— Missão?? Mas que missão?
Não obtive qualquer resposta. A Morte limitou-se a sorrir e desapareceu. Fiquei ali pensativo à beira de Julie. Só sai quando vieram buscar Julie.
...
Era incrível! Como era possível que a Morte leva-se Julie? Logo ela. Choro.
Ahhh, Julie! Se soubesses as saudades que tenho tuas. Será que eu tinha um trato com a Morte? Que missão era aquela que Ela me falou? Será que eu era o guia da Morte? Guiava-a até às suas vítimas? Esta ideia assusta-me!
Já é tarde. Vou dormir. Apago as velas e deito-me.
Amanhece. Acordo. Continuo rodeado de nuvens e silêncio. Um silêncio profundo.
...
Dias depois a revolução tinha acabado. O presidente tinha assumido a derrota demitindo-se. A população andava em festa. Toda a gente estava contente. Todos, menos eu, que andava com uma crise depressiva muito grave.
Deixei o jornal. Durante mês e meio não sai de casa. Depois, decidi-me e consultei um psiquiatra. Andei cerca de dois meses no psiquiatra, com algumas melhoras.
Ao princípio a psiquiatra não se acreditou muito na minha história e nos encontros com a Morte. Achava que eram ilusões minhas provocadas pela crise depressiva. Tentou que eu me esquece-se Dela, mas foi em vão.
Numa das sessões, na qual fui hipnotizado, o psiquiatra disse-me:
— Você não desiste da ideia da Morte. Até hipnotizado fala sobre ela.
— Falei, Sr. Doutor?
— Sim. E falou em mais uma coisa que me deixou intrigado.
— O quê, Sr. Doutor?
— Você falou numa missão. Disse que veio para cá realizar uma missão. Que missão é essa?
— Missão??? — disse surpreendido — Não sei de missão nenhuma. O que é que eu disse mais?
— Só isso que tinha uma missão para cumprir aqui. Mas aqui onde? Onde é que você tem de cumprir essa missão?
Tudo se tornou mais claro agora. Sim percebi na altura, que tinha sido incumbido de uma missão. Qual? Não sei! Mas sabia perfeitamente onde era.
— Aqui mesmo, Sr. Doutor. — respondi — Aqui na terra, juntos ao ser humano.
— Aqui? Bom, veremos isso numa outra sessão. Queria fazer agora um teste consigo para avaliar o seu comportamento. Quero saber se já melhorou mais alguma coisa desde o mês passado.
O psiquiatra sentou-se na sua secretária.
— Vou-lhe dizer algumas palavras e você tem de me dizer em 10 segundos o que significa para si, ou um sinónimo.
— Tudo bem, Sr. Doutor! Pode começar.
— Viver?
— Sofrer
— Vida?
— Inferno
— Morte?
— Salvação
— Porra! Assim não dá! Você não melhorou nada. Acho que até piorou. MORTE É SALVAÇÃO? Isto assim vai custar um bocado curar.
— Deixe estar, Sr. Doutor. Só me resta uma solução, e com certeza não é esta. Eu sei o que tenho de fazer.
Naquele momento tinha apercebido da minha situação no mundo. Já nada tinha lá a fazer. A minha missão tinha acabado.
Peguei no carro e meti pela estrada fora, sem destino, sem rumo. Sim, pela primeira vez chamei pela Morte. Sabia que era a única salvação para sair daquele inferno. Não me lembro muito bem do que se passou, só me lembro de ter sentido mais uma vez aquele cheiro a enxofre e humidade. Olhei para o lado e lá estava Ela.
— Chamaste-me a cá estou eu — disse Ela — O teu desejo será cumprido.
Sorriu. Depois só me lembro de ter ouvido uma buzina e de ter visto uma luzes enormes à minha frente. Ouvi um grande estrondo e não me lembro de mais nada, só de ter acordado aqui.
IX
Será mesmo verdade? Terei morrido? Agora torna-se tudo muito mais claro. Agora lembro-me de tudo. Eu era ( e se calhar ainda sou) o braço direito da Morte. Eu era o seu assessor. Fui enviado para a terra com a missão de guiar a Morte até às suas vitimas.
Sim, o meu maior medo tornou-se real. Eu sou o melhor amigo da Morte. Agora percebo porque é que aquele cheiro não me era estranho, porque é que me sentia calmo perante a Morte.
Não, eu, se soubesse, não teria aceitado este trabalho. O ser humano é muito complexo, difícil de entender. Se eu soubesse que para se ser ser humano é preciso sofrer, não teria aceitado nunca esta missão. Mas eu não sabia o que era ser humano... não sabia que se esquecia toda a nossa história quando se nasce, não sabia que tinha de viver.
Ahhh!!!! Como aqui se está bem. Sem a confusão humana que é o mundo. Sem a raiva, a inveja, o ódio, o pudor e todas as outras coisas que só os humanos são capazes de realizar.
Espera! Estou a sentir outra vez este cheiro, olho para o lado. É Ela que vem aí. Aproxima-se.
— Olá William! — diz Ela — Já sabes agora tudo?
— Já! Já sei tudo, menos uma coisa. Porque é que fiquei aqui durante 2 ou 3 dias? E porque é que sentia uma vontade insaciável de escrever tudo o que se passou?
— Ah! Ah! Ah! Sabes aqui é para onde vêm as pessoas depois de morrerem. São obrigadas a escrever o balanço da sua vida.
— E depois é arquivado no Arquivo Geral?
— Estás ver como já estás a perceber? Claro, é arquivado e depois as pessoas podem consultar todas as suas vidas passadas.
— Pois... Estou a ver. Mas eu não tenho lá nada, pois não?
— Não, mas também não precisas! Desempenhas-te uma boa missão. Fizeste muito bem o teu trabalho. Agora só voltas lá se quiseres.
— Não, não quero! Eu agora queria era estar com os meus amigos. Aqueles por quem eu sofri.
— Como te portas-te bem lá embaixo e como sofreste como ser humano, devo-te essa regalia. Anda comigo.
Sigo a Morte. Caminhamos lentamente.
— Vou-te levar para junto dos teus amigos, mas tens de me prometer, que continuas ao meu serviço. Fazes todos os trabalhos que te pedir.
— Desde que não seja para voltar à terra.
O Morte ri. É impressionante a imagem que o homem tem da morte, acho que nunca nenhum homem consegue imaginar a Morte a rir. Acham-Na um ser cruel sem piedade.
O homem tem medo da Morte. Pobres ignorantes.
Paramos. A Morte olha para mim, sorri e com um movimento da foice ambos desaparecemos.

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