janeiro 07, 2005

Barks

BARKS


I


Morbid é uma vila calma, situada à beira mar, a 10 km de Nowhere City. Os seus habitantes vivem sossegadamente a sua pequena rotina fechada, sem grandes ambições e sem nunca terem saído muito da sua pequena vila.
Morbid vivia, basicamente, do turismo e da pesca. Durante o verão ocupavam-se em alugar casas, montar barracas de comes e bebes, animações e tudo o que pudesse interessar aos turistas. No resto do ano pescavam e tratavam das suas pequenas hortas, não só para ocuparem o tempo, mas também para terem alguma comida, pois o dinheiro que a vila ganhava no Verão dava-lhes subsistência suficiente para o resto do ano.
Madame Delacroix era um travesti, uma daquelas personagens que toda a vila conhecia. Ninguém gostava muito dela, era uma pessoa má e mesquinha, que estava sempre a meter-se na vida dos outros. Trabalhava à noite num bar de travestis e raramente era vista durante a luz do dia, tirando algumas vezes que aparecia na janela de sua casa. Vivia num belo edifício mesmo em frente ao castelo, no centro costeiro da vila. Sabia tudo sobre todos, sabia os segredos mais secretos da vila e à custa disso já tinha “queimado” muito boa gente de Morbid.
Mas Madame Delacroix não era a única personagem estranha na vila, havia uma outra personagem ainda mais estranha, muito mais enigmática e de quem muitas pessoas tinham medo: Robert Barks. Ninguém sabia onde Barks trabalhava, nem sequer o que fazia, mas sabia-se que vivia sozinho, saía de casa todos os dias às onze horas da manhã, passava pela tabacaria, comprava o jornal e um maço de tabaco, entrava no café “Royal Break”, tomava o seu café e lia o jornal. Isto tudo num espaço de 30 minutos exactos. Às onze e meia abandonava o café em direcção ao seu carro e às onze horas e cinquenta e dois minutos exactos passava a portagem de Morbid em direcção a Nowhere City. Não se sabia mais nada a respeito de Barks, a não ser que chegava todos os dias às sete da tarde, entrava em casa e só voltaria a sair às dez da noite para dar um passeio perto do castelo. Normalmente regressava a casa por volta das onze menos um quarto, o tempo de dar a volta ao castelo, olhar o horizonte e fumar dois cigarros. Sim, Barks era de uma exactidão horária tal, que Nicholas, seu vizinho, acertava os seus relógios por ele. Às vezes demorava um pouco mais, sentava-se num banco perto do castelo a pensar e a fumar mais um cigarro, regressando a casa às onze horas e doze minutos exactos.
Poucas pessoas cruzavam-se com Barks nessa altura. Madame Delacroix era uma delas, costumava sair de casa por volta das onze horas e às vezes ainda apanhava Barks, quando este resolvia dar um passeio mais longo.
“Sempre com o seu andar vagaroso, pensativo, mas com um olhar tenebroso, sempre que olha para mim arrepio-me. Aquele homem mete medo. Ninguém sabe o que ele faz, nem quem ele é. Acreditem em mim, não se metam com ele, é uma pessoa perigosa!” dizia Madame Delacroix às pessoas, que raramente lhe davam ouvidos, mas todas concordavam que Barks era uma pessoa estranha.
Barks também não gostava de Madame Delacroix. Achava-a asquerosa, mesquinha e intrometida. O facto de ela estar sempre a meter-se na vida dos outros era, para ele, repugnante. Por isso, sempre que se cruzava com ela, lançava-lhe um olhar aterrador e divertia-se imenso, sem o demonstrar, quando ela reparava no seu olhar e começava a tremer. Gostaria de pensar que Barks dava, às vezes, o seu passeio mais longo, só para se cruzar com Madame Delacroix e lhe deitar os seus olhos de fogo e com isso regressar mais alegre a casa.
II
Numa noite, como de costume, às dez horas da noite, Barks saiu para o seu passeio habitual. Dirigiu-se para o castelo e acendeu um cigarro. Subitamente algo fez despertar a sua atenção. Um pequeno ruído que vinha perto do castelo. Barks desviou-se ligeiramente da sua rota habitual para investigar um pouco melhor aquele ruído. Qual não é a sua surpresa ao reparar que é um pequeno grupo de cães que se encontrava ali. Barks estava farto de saber que aquele grupo de cães estava sempre ali, passava por eles todos os dias e normalmente faziam-lhe companhia quando se sentava no banco a apreciar o horizonte, mas mesmo assim ficou surpreendido por ter reparado neles e disso o ter desviado ligeiramente do seu curso habitual. O que seria de tão estranho para ter desperto a sua atenção, naqueles cães, pensava Barks. Pareciam famintos, mas eles costumavam alimentar-se dos restos que sobravam da feira e das pequenas coisas que as pessoas caridosas lhes davam enquanto passeavam e viam as bancas. Pois, mas naquele dia de tarde tinha despertado um temporal e provavelmente não houve feira, pensava Barks, as pessoas também não devem ter passado muito por ali. Desgraçados dos bichos…
Então, pela primeira vez em Morbid, aconteceu algo de inacreditável. Barks quebrou toda a sua rotina e regressou rapidamente a casa, recolheu os restos de arroz que haviam sobrado do seu jantar e voltou para o castelo.
*
Nicholas, o seu vizinho, sentiu algo de estranho. Passavam pouco das dez e meia e já sentia Barks a entrar em casa. Correu velozmente para a janela e viu Barks a entrar em casa. “Tão cedo..., pensou, Isto não é bom sinal. Vem aí algo de desagradável.”
Ainda estava Nicholas a perguntar-se o porquê desta mudança súbdita e a pensar como é que haveria de acertar os seus relógios se Barks começasse a mudar de hábitos, quando este volta a sair de casa, desta vez com um saco de comida, dirigindo-se rapidamente para o castelo. “Isto é muito estranho! Isto não me agrada nada! Um dia de temporal, noite de lua cheia! Isto não me agrada nada!” Fechou as janelas a correr e voltou-se a sentar no sofá, rezando para que não se passasse nada.
*
Barks regressava ao castelo. Chegou à beira dos cães e começou a abrir o saco de comida quando se sentiu observado. Olhou à sua volta rapidamente parando o seu olhar no prédio de Madame Delacroix. Ali estava ela no seu terceiro andar, olhando fixamente para Barks. Envergava um enorme vestido vermelho, esguio, cheio de plumas e folhos. Provavelmente também ela tinha estranhado a atitude de Barks e, curiosa como era, estaria atenta ao que se passava e receosa do que poderia sair daquela pessoa.
Barks parou e ficou a olhar fixamente para Madame Delacroix. O seu primeiro instinto foi pegar nas coisas e seguir caminho. Aquela vaca não precisava de saber o que ele ia ali fazer, pensara ele. Conteve-se, virou costas e forneceu a comida aos cães que, num ápice de gula, fome e contentamento correram em sua direcção, devorando cobiçosamente o regalo dos deuses. Barks sorriu. Era raro sorrir, salvo quando fazia cara feia a Madame Delacroix, coisa que lhe dava um enorme prazer. Acendeu um cigarro e olhou novamente para o prédio de Madame Delacroix. Ela continuava ali a olhar fixamente para ele, parecia que nem se tinha movido, estava precisamente na mesma posição e com o mesmo olhar. Barks torceu o nariz, aquela mulher não era de confiança, mas não lhe podia mostrar apreensão, isso seria a glória de Madame Delacroix. Olhou para o relógio e reparou que já eram quase onze horas, só tinha mais doze minutos para o seu passeio. Com um aceno suave e um sorriso amarelo de orelha a orelha despediu-se de Madame Delacroix, a qual também não fraquejou e ficou rigorosamente na mesma posição, sem qualquer reacção. Parecia uma morta, pensou Barks enquanto retomava a sua rota habitual. Sentou-se um pouco no banco para apreciar o horizonte enquanto fumava mais um cigarro.
*
Nicholas ouviu Barks a regressar a casa. Eram exactamente onze horas e doze minutos. Suspirou de leve, visto Barks permanecer a sua exactidão horária, mesmo assim aquela história continuava a não lhe agradar, mas não podia pensar mais nisso, já eram quase onze e vinte e ele tinha que se aprontar para fazer a recolha habitual do lixo.