setembro 02, 2004

AIDS No More (II)

IV

Todos os dias era a mesma coisa: ao final da tarde Watson ia ter com James ao quarto para falarem um bocado e à noite aparecia Christine que ficava sempre até tarde a conversar com James.
James tinha decidido ficar no hospital até os testes terem acabado. «Dá-me mais jeito» foi o que ele disse acerca do assunto.
Passado três meses e meio, Watson foi ter com James com o resultado dos testes.
— Pois é, James! — disse Watson, com um ar muito sério — Já descobrimos a substância que combate o HIV no teu organismo.
— E qual é, Watson? — perguntou James, que começava a ficar inquieto com a conversa.
— Bem.... — disse Watson — Os teus glóbulos vermelhos uniram-se aos glóbulos brancos produzindo uma substância, a que chama-mos de ANM. ( [1] )
— ANM? — perguntou James, confuso — O que é que isso quer dizer?
— AIDS No More. — respondeu Watson — Descobrimos que a ANM combate fortemente o HIV, mas há um pequeno problema.
— O quê, Watson? — perguntou James, com um certo receio.
— Como sabes, — disse Watson, que começava a ficar nervoso — até hoje só tu é que tens um sistema de combate à SIDA. Ora bem, nós vamos ter que te tirar alguma ANM, para vermos a sua composição, a sua fórmula química, etc.
— E há perigo de correr algum risco? — perguntou James.
— Era isso mesmo que eu te queria dizer, — disse Watson, muito seriamente. Ficou a olhar para James um bocado antes de continuar — há um grande risco de tu morreres ou ficares gravemente doente se te tiramos a ANM. Isto é assim: a ANM é fruto da junção dos glóbulos vermelhos com os brancos, segundo os testes é a ANM que os faz sobreviver em conjunto. Ora os médicos acham, acham não, têm quase absoluta certeza de que se te tirarmos alguma ANM, tanto os glóbulos brancos, como os vermelhos, são capazes de morrer.
Quando Watson acabou de falar caiu um silêncio profundo no quarto. Um silêncio pensativo, mas, ao mesmo tempo, sufocante.
— E tu querias-me perguntar se eu autorizo que me tirem ANM? — perguntou James, olhando de lado para Watson, que lhe respondeu com um aceno de cabeça. James ficou vermelho de raiva e chateado — Autorizo o caralho!! Se vocês pensam que vos vou deixar tirar uma merda de uma substância para salvar milhares de paneleiros e putas, para depois eu morrer? Pois estão muito enganados. Ide-vos foder!! Arranjem a ANM do vosso cú, porque do meu vocês não vão ter nada.
Watson durante todo o discurso exaltado de James ficou estupefacto. Não estava à espera de uma reacção tão bruta de James ao assunto.
— James? — disse Watson, que ainda estava boquiaberto — Nunca te vi assim. O que é que se passa contigo?
— Achas que eu não tenho razão? — perguntou James, um bocado mais calmo — Põe-te no meu lugar. O que é que fazias? Assinavas um contrato com a morte? Era isso que fazias?
— Bem... — disse Watson, pensativamente — Se fosse para bem da humanidade, acho que sim, que aceitava.
— Que se foda a humanidade! — disse James, irritado com a conversa de Watson — Eu bem tinha razão. Vocês queriam-me ver morto.
Houve, depois, um breve silêncio. Tanto Watson como James reflectiam no que haveriam de fazer para resolver este caso.
— Então, — disse Watson, calmamente — quer dizer que tu não autorizas a operação?
— Não autorizo, — disse James, olhando para Watson — nem nunca hei-de autorizar.
— Tu é que sabes. O ANM é teu, és tu que comandas tudo. Sem a tua autorização, não podemos fazer nada. — disse Watson, desiludido.
— O problema é vosso. — disse James, seriamente — Da minha parte já sabem que não levam nada.
— Amanhã, se quiseres, já podes ir para tua casa. — disse Watson, tristemente — De qualquer maneira, obrigado por toda a ajuda que nos destes.
— De nada, Watson. — disse James — Eu agi de boa vontade, agora a vossa proposta é que é completamente absurda. Nunca na vida eu ia aceitá-la.
— Até logo, James — disse Watson, saindo do quarto.
— Até logo, Watson.

V

Passaram-se vários dias, depois de James ter saído do hospital. James andava inseguro, não conseguia fazer certas coisas, já não era o mesmo James que era há meses atrás.
Watson nunca mais tinha visto James, mas pensava sempre nele. Pensava no que ele estaria a fazer ou a pensar.
James raramente saiu de casa. Passava os dias a ver televisão e a ler livros, mas sem saber porquê, nunca se sentia feliz, havia sempre alguma coisa que o incomodava; e essa coisa era o ANM. Um dia Christine disse-lhe:
— James. Tu não podes continuar assim. Tu tens de fazer alguma coisa, ou vais acabar em maluco.
— O que é que queres que eu faça? — disse James, irritado — Me entregue à morte?
— Watson disse que tinhas 30% de chances de te salvares. Porque é que não tentas?
— O quê!!!?? — respondeu James, admirado — E os 70% de chances de eu morrer, não contam? Foda-se!!! Parece que toda a gente quer-me ver morto.
— Então, James — disse Christine, irritada —, se não queres fazer a operação, esquece de uma vez por todas o assunto, porque estou farta de te ver assim.
Alguns dias depois James estava a ler o jornal, quando viu uma noticia acerca da SIDA.
SIDA: CADA VEZ MAIS

O vírus HIV, causador da SIDA, está a provocar, cada vez mais, seropositivos. Os números são assustadores, do ano passado para este ano, os infectados pelo HIV, aumentaram para o dobro.
Cientistas prevêem que no final do ano mais de 250 mil pessoas devem morrer de SIDA, e para daqui a dois anos, se isto continuar assim, devem morrer mais de um milhão de seropositivos.


James pousou o jornal e ficou durante algum tempo sem se mexer. Parecia que estava morto. Christine, entretanto, chegou à sala e viu James muito quieto.
— Passa-se alguma coisa, Jim? — perguntou Christine, assustada — Estás-te a sentir bem? — James continuou quieto sem dizer palavra nenhuma.
— Jim? — perguntou novamente Christine — James? Estás-me a ouvir?
— O quê? — disse James, atarantado como se tivesse acordado de repente — Ah! És tu Christine.
— Tu estás bem, James?
— Estou, — disse James, calmamente — porquê?
— Estavas com um ar um bocado estranho. — disse Christine, assustada — Parecia até que tinhas ficado paralítico. O que é que se passa?
— Nada. — disse James, fechando o jornal e pondo-o na mesa — Não se passa nada.
James levantou-se e foi até ao quarto. Aí ficou até serem horas de jantar.
VI

Cristine e James estavam a ver o telejornal enquanto jantavam.
Uma das notícias do telejornal era sobre a SIDA e o número de mortos e afectados por esta. James, num acto reflexo, mudou de canal. Christine ficou intrigada com aquilo e quando olhou para James viu que estava um bocado nervoso.
— Diz-me o que é que se passa, James. — disse Christine, intrigada.
— Não se passa nada! — disse James, irritado — Já te disse que não se passa nada.
— Eu vi a notícia no jornal, James — disse Christine, ternamente — Eu sei o que é que deves estar a pensar. Tens nas tuas mãos a possibilidade de salvar aquelas pessoas, não é?
— É — disse James, que começara a chorar —, mas eu também não quero morrer. Mas também não quero que milhares de pessoas morram por causa do meu egoísmo. Oh, Deus, que hei-de eu fazer?
— Tem calma, Jim — disse Christine, abraçando-o. Ficaram assim durante algum tempo, abraçados. James soluçava, enquanto Christine afagava-lhe o cabelo.
Alguns dias depois James foi até ao consultório de Watson. Ao chegar lá disse a Watson a sua decisão final.
— Mas... — disse Watson, assustado — Tens a certeza disso?
— A certeza absoluta! — disse James, sorrindo. Watson estava a olhar para ele com a boca aberta.
— O que é que te levou a tomar essa decisão? — perguntou Watson, curioso. James olhou para os lados para ter a certeza de que ninguém estava a ouvir e disse:
— É que a Christine está grávida de dois meses. — disse James, baixinho. Watson ainda ficou com a boca mais aberta.
— O-os m-m-meus p-p-parabéns. — gaguejou Watson — Por essa eu não contava.
— E... — disse James, com convicção —, não sei se estás a perceber, mas eu não queria que o meu filho nascesse num mundo com SIDA. — James fez uma pausa, para molhar os lábios, antes de continuar — Imagina o que seria de mim se daqui a uns 17 ou 18 anos o meu filho viesse ter comigo a dizer que tinha SIDA. Com que cara é que eu ficava? Não, eu não quero viver sempre com este remorso, com este medo, com esta responsabilidade nas mãos.
Watson tinha ouvido atentamente os argumentos de James e depois de ter reflectido neles disse:
— Eu não sei o que faria na tua situação, mas acho que se o meu filho me viesse dizer que estava com SIDA, eu suicidava-me!!
— Pois é justamente isso que eu quero evitar. — disse James, comovido — Eu quero que o meu filho viva a vida sem problemas, quero que ele tenha liberdade de acção, quero que ele tenha paz, embora seja difícil na merda deste mundo.
— Mas, James — disse Watson, seriamente —, já pensaste que tens graves possibilidades de morrer?
— Já, Watson. — disse James, olhando de frente para Watson com um ar sério — Já! Já pensei nisso tudo e não ligo um caralho para isso. Pelo menos se morrer posso ter o orgulho de ter salvo a vida de milhares de pessoas. Posso ter o orgulho de ter escrito na minha campa «Aqui jaze aquele que sacrificou a sua vida para salvar milhares de pessoas».
Watson estava comovido com aquela conversa toda. As lágrimas corriam-lhe pela face, a voz já lhe fugia, mas mesmo assim ainda conseguiu dizer:
— Aconteça o que acontecer só te quero dizer uma coisa: Tu foste sempre o meu melhor amigo e sempre te admirei pela tua coragem.
Incapazes de dizer mais alguma palavra, James e Watson abraçaram-se e choraram. Ficaram assim bastante tempo, até que Watson perguntou:
— E Christine? O que é que ela achou da tua decisão?
— Oh! Nem me lembres. — disse James, limpando as lágrimas e voltando-se a sentar — Ela ficou tristíssima, mas estava de acordo comigo. Concordou sempre comigo.
— Vai ser um choque para ela. Coitada. — disse Watson, tristemente — Quando é que queres fazer a operação?
— Isso agora depende de vocês. — disse James — Quando quiserem eu vou.
— Muito bem! Eu depois digo-te alguma coisa. — disse Watson olhando para o calendário.
( [1] ) N. A. - Estes dados médicos são puramente fictícios. Não existe nenhuma substância chamada ANM (AIDS No More) e era completamente impossível os glóbulos brancos juntarem-se aos glóbulos vermelhos, pois era a morte certa do indivíduo.

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