setembro 11, 2004

Morte e Salvação (III)

IV
Sinto cada vez mais uma vontade irresistível de escrever o passado. Mas porquê? Porquê? A única coisa que vejo à minha volta são nuvens, nada mais. Estarei eu no céu? Não, não pode ser, não me lembro de ter morrido e mesmo que tivesse, o céu não é deserto. Já não está tanto calor, sopra, agora, uma leve brisa que me refresca a cara enquanto escrevo. Relembro ainda Jerry, aquele que tinha capacidades de ser um grande jogador e que, por uma infelicidade, ficou incapacitado de jogar e de andar.
Pouco tempo depois, duas semanas antes do meu casamento com Julie, fizemos uma viagem de finalistas a Orlando, pouco antes de acabarem as aulas. Foi uma viagem de quatro dias, mas que deu para nos divertirmos bastante. Foi bastante pessoal, só Julie é que não pode ir, porque estava doente, mas foi Jack e Arthur, os meus melhores amigos.
Conheci Arthur no primeiro ano que fui para a faculdade, desde o primeiro dia que nos demos bem, mais tarde, fui eu quem lhe apresentou a Jackie, com quem ele namorava há já três anos.
Essa viagem foi espantosa, o pessoal era do melhor e toda a gente se dava bem. As noites em Orlando eram incríveis, era raro encontrar uma rua, ou um bar, sem ninguém, estava tudo a abarrotar. Mal se podia andar nas ruas.
No último dia que estivemos em Orlando, o terceiro dia da viagem, Arthur começou a “curtir” com a Kim. Não é que eu me importasse, mas quando os vi, ali, determinados e convictos assustei-me. Lembro-me de ter falado com Jack sobre o assunto.
— Não te preocupes. — disse Jack — Sabes como é o Arthur, ele anda chateado com a Jackie e agora está a curtir com a Kim só para lhe fazer ciúmes. Vais ver quando ele chegar, vai logo a correr para os braços da Jackie.
Não me fiei muito na conversa do Jack, fiquei na dúvida se era mesmo aquilo que Arthur queria. No dia seguinte tivemos de acordar cedo pois a viagem ia ser longa. Durante toda a viagem Arthur ia sempre agarrado nos braços de Kim, não se pode dizer que Arthur tivesse mau gosto, porque Kim era bastante bonita. Eu ainda andava intrigado com o tal casal.
— Não me digas — disse Jack, quando lhe falei outra vez no assunto — que estás com ciúmes da Kim? Ai, ai, ai, quando a Julie souber..... Vai ser bonito!!
— Não é nada disso, estúpido! — disse eu, que começava a ficar irritado — Quanto é que apostas comigo como Arthur, quando chegarmos à universidade, vai cortar o namoro com Jackie?
— Não!!! — disse Jack, espantado — Não, Arthur nunca teria coragem de fazer uma barbaridade dessas. Fazer isso com a Jackie?? Não.
Pois, pois!! Se eu me fosse a fiar em ti, o mundo era quadrado e cor-de-rosa. As minhas dúvidas foram resolvidas mal cheguei na segunda-feira à faculdade. Não se falava noutra coisa, a não ser que Arthur tinha acabado o namoro com Jackie. Quando soube da notícia virei-me para Jack e disse-lhe:
— Estás a ver???? O que é que eu te tinha dito, caralho?
Fui ter com Jackie. Jackie estava sentada num banco, triste e solitária. Sentei-me ao lado dela e fiquei a conversar com ela.
— Andam por aí a dizer que ele curtiu com uma tipa na viagem. — disse Jackie, quase a chorar — É verdade? Diz-me, por favor! Com quem? Com quem?
— Não sei de nada — disse eu — Se ele curtiu ou não, o problema é dele. Agora quem era a rapariga, eu não sei. — É verdade. Eu menti. Sim, sim, eu sei que não se deve mentir, mas o que é que vocês queriam???? Que eu lhe disse-se que Arthur tinha curtido com a melhor amiga dela?? Não! Eu não lhe podia dizer isso. — Mas não te preocupes, vais ver que o Arthur ainda volta para ti.
— Oh!! Tu também nunca mudas, sempre a tentar ver as pessoas felizes.
De nada valeu eu ter mentido, pois na hora seguinte Jackie viu Arthur e Kim em alto “marmelanço”.
— William. — disse Jack, com a voz a tremer — Diz-me, aquela não é a Kim?
— Onde? — fiz-me de despercebido — Não a vejo.
— Ali. Ali, aquela “gaja” que está aos beijos com o Arthur.
— Não! Não deve ser ela. Deve ser alguém parecida com ela.
— É ela!! É ela!!! Puta do caralho. Vou foder-lhe os cornos.
Assustei-me com a reacção de Jackie. Tinha a cara vermelha, os olhos raivosos e manobrava as mãos como se tivesse a estrangular alguém.
— Tem calma, Jackie. Vamos ver se resolvemos as coisas sem recorrer à violência.
Mas Jackie não me quis ouvir e fugiu. Durante o dia todo nunca mais a vi. Fui falar com Arthur.
— Por que é que acabaste o teu namoro com a Jackie? — perguntei-lhe.
— Já estava farto dela, já não gostávamos mais um do outro. — disse Arthur com um sorriso nos lábios. — E depois encontrei a grande paixão da minha vida. A Kim.
— Isso é tudo mentira, Arthur. Pensas que eu não te conheço? A Jackie ama-te, ela gosta de ti, ela é louca por ti. Ela era capaz de se matar por ti. — Mais tarde arrependi-me de lhe ter dito isto, mas eu não podia adivinhar — Tu é que te chateaste com ela e, para te vingares, falaste com a Kim e começaram a curtir só para fazer ciúmes à Jackie. Por azar a coisa caiu para o torto e vocês apaixonaram-se um pelo outro. Certo?
Arthur não disse nada, limitou-se a olhar para o infinito. O sorriso que tinha nos lábios tinha desaparecido.
— Estou certo, ou não estou? Foi, ou não foi isto que se passou? Responde, caralho!!!
— Foi! — disse ele, com uma voz sumida — Foi exactamente isso que aconteceu. Nunca pensei que numa brincadeira inocente me viesse a apaixonar pela Kim. Mas quando nós combinamos tudo e começamos a sair e curtir juntos, descobri que ela era exactamente tudo o que eu queria. Era a mulher ideal.
— E a ela aconteceu-lhe o mesmo. Não foi?
— Exacto. Foi uma espécie de amor à primeira vista. Um bocado diferente.
— Então, porque é que não explicaste tudo à Jackie. Tu e a Kim iam falar com ela e explicavam, calmamente, o que tinha acontecido. De certeza que ela iria perceber, podia demorar algum tempo, mas ela iria perceber.
— Não sei..... Talvez sim, talvez não. Ela ficou muito magoada, não ficou? Eu fui um bocado duro com ela, não fui?
Acenei-lhe afirmativamente.
— Amanhã, — disse Arthur, com convicção — sem receios, vou falar com ela. Eu e a Kim.
No dia seguinte, de manhã, quando cheguei à faculdade fui perguntar a Kim se já tinham falado com Jackie.
— Ainda não. — disse Kim — Estou à espera de Arthur para falarmos com ela.
Entretanto apareceu Jackie, mas não era aquela Jackie que toda a gente conhecia. Era uma Jackie que trazia raiva no rosto, fúria nos olhos e desgosto no coração. Jackie chega à beira de Kim e disse:
— Tu, minha linda, estás marcada. Hoje não sais daqui viva. — Jackie abre o casaco, mostrando a coronha de uma pistola. — Prepara-te.
— Mas, Jackie.... — disse Kim, apavorada — Eu e Arthur queremos falar contigo sobre o assunto.
— Tu e o Arthur! Tu e o Arthur! Pois eu quero que vocês se fodam!! Não há nada para discutir.
Quando acabou de falar, Jackie foi-se embora, sem mais palavras. Kim ficou assustada e com medo.
— Não te preocupes, Kim. Aquilo foi só para te intimidar. Só para te assustar. A Jackie era incapaz de fazer uma coisa dessas.
Na hora a seguir, Chris, um grande amigo de Jackie, estava com uma fita métrica a medir Kim.
— O que é que estás a fazer, Chris? — perguntou Kim, assustada.
— Cala-te!! — disse Chris num tom de brincadeira — Estou-te a tirar as medidas para o caixão.
Kim ficou apavorada, começou a chorar e desatou a correr. Eu ainda me ri um bocado com aquela cena, pensava que aquilo era tudo montado pela Jackie para assustar Kim. Se a verdade fosse essa ela tinha conseguido. Mas eu ainda andava preocupado com uma coisa: a arma que Jackie trazia no bolso. Seria verdadeira?
V
Está a ficar escuro e frio. Visto o meu casaco e acendo as velas. Sinto-me cansado, dói-me as costas. Vou continuar a escrever e depois vou dormir.
Horas mais tarde chega Arthur à Faculdade. Veio ter comigo e perguntou por Kim. Levei-o até ela. Estávamos os três a combinar o que iríamos dizer a Jackie e como o deveríamos dizer, quando Jackie apareceu. O seu rosto mostrava ainda mais raiva e os seus olhos mostravam uma fúria inexplicável. Senti nesse momento um leve cheiro a humidade e enxofre.
— Jackie, — disse Arthur, sorrindo — era mesmo contigo que nós queríamos falar.
— Já disse que não há nada a dizer!! — gritou Jackie.
— Mas, Jackie, — disse eu — Tenta pelo menos ouvir a explicação que eles têm para te dar.
— Não quero saber. Não quero saber de nada.
— Jackie, — disse Kim, assustada — tu és a minha melhor amiga. Eu gosto muito de ti e só te quero explicar o que aconteceu.
— Tu eras, eras, a minha melhor amiga. Antes de me apunhalar pelas costas.
Jackie tira o revólver do casaco e aponta para Jackie.
— Com amigas destas eu não preciso de inimigos.
Eu ainda corri para Jackie, mas não fui a tempo. Jackie descarregou dois tiros certeiros em Kim, que caiu no chão, inerte, morta. Arthur ajoelhou-se rapidamente olha para Kim e começa a chorar.
— Não!!!!!!!! — gritou Arthur — Não!!!!!
Jackie continuava com a arma apontada, mas desta vez para Arthur. Eu agarrei-lhe a mão com tanta força que a obriguei a largar a arma. Arthur continuava no chão a chorar. Eu fiquei durante um bocado agarrado à mão de Jackie, com medo que ela fizesse outra asneira. Arthur levantou-se, pegou na arma e apontou-a para Jackie.
— Sabes o que mereces agora, minha puta? — disse Arthur, com os olhos húmidos e a mão a tremer — Sabes? Tu merecias morrer. Mataste a Kim, aquela que seria, talvez, o maior amor da minha vida. Eu não merecia isto foste tu que quiseste.
Eu ainda tentei evitar que Arthur disparasse, mas mal me aproximei dele, levei um soco que me deitou ao chão.
— E ela? — disse Jackie — Sabes o que ela me roubou? Ela roubou-me aquilo que eu mais gostava neste mundo, toda a razão da minha existência, toda a fonte da minha alegria, isto é: TU!!
Arthur olhava para Jackie como se procurasse alguma razão para a não matar, como se procurasse alguma coisa lá dentro que ainda o fizesse gostar dela. Não deve ter encontrado nada, pois apontou a arma directa para a cabeça de Jackie.
— Deve haver mil e uma razões para não te matar. — disse Arthur, raivosamente — Neste exacto momento não encontro nenhuma.
— Não!! — gritei eu, ainda caído no chão, meio inconsciente — Arthur, não, por favor.
Mas Arthur não me ligou, ou não me ouviu, e disparou. Jackie caiu no chão atingida no peito.
— E-e-e-eu a-a-am-am-amava-te, A-A-Arthur!! — disse Jackie, antes de fechar os olhos e morrer.
Arthur ficou a olhar para Jackie, depois ajoelhou-se à beira de Kim. Eu levantei-me, ainda tonto, e fui ter com Arthur.
— Sabes, William, — disse Arthur — a Kim era rapariga espectacular. Eu amava-a.
— Anda embora. — disse eu, pegando-lhe na mão — Anda, antes que venha a polícia. Já acabou tudo. Nada mais há a fazer.
— Não! Ainda não acabou. — disse Arthur, levantando-se — Ainda falta uma coisa.
Arthur leva a arma à cabeça e diz:
— Eu não tenho nada a fazer aqui. Não posso viver sem a Kim.
Arthur olhou para mim, depois para Jack e Julie que tinham acabado de chegar, sorriu e disparou.
Eu não podia acreditar no que estava a ver. Julie veio ter comigo, aterrorizada, e abraçou-se a mim. Ficamos abraçados durante muito tempo, enquanto na faculdade o pânico era geral. Expliquei a Jack tudo o que tinha acontecido, tintim por tintim.
— Percebeste tudo? — perguntei eu. — Consegues explicar tudo o que aconteceu à Polícia?
— Acho que sim. — disse ­Jack — Vou tentar.
— Tenta. — disse eu — Eu não vou conseguir estar aqui por muito tempo. Vou para casa com a Julie.
Era incrível o cheiro a enxofre que se tinha espalhado pela Faculdade. A enxofre e a humidade.
Afastei-me, com Julie, da faculdade. Poucos minutos depois chegou a polícia e Jack contou tudo o que se tinha passado.
...
Aquele cheiro a enxofre e humidade intrigou-me muito. Não sabia o que era, nem de onde vinha. Mas sei que já tinha sentido aquele cheiro antes, mas onde? Quando? Aquele cheiro está ligado a alguma coisa, mas o quê?
Está de noite. Estou cansado. Ainda estou a pensar em Arthur, Kim e Jackie. Como foi possível que eu não tenha conseguido evitar aquela tragédia? Como é que não me apercebi logo do que iria acontecer? Ohh, destino, como foste capaz de matar a Kim e a Jackie? Porque é que te matas-te, Arthur? A Kim era tão bela, com os seus olhos azuis e o seu cabelo loiro, era uma deusa. Mas Jackie não lhe ficava atrás, os seus provocadores olhos castanhos, o cabelo castanho claro e a sua maneira exuberante de se vestir, tornavam-na um pólo de atracções dos olhares masculinos.
Vou dormir. Amanhã continuo a escrever.
Acordo! Continuo rodeado de nuvens e só, completamente só. Os dias começam a ficar mais frescos. Desconfio que se está a aproximar o Inverno. Levanto-me e sento-me na secretária. Não se ouve ruído algum. Silêncio, silêncio e mais silêncio. Começo a escrever, cada vez que escrevo recordo melhor o meu passado, sim, sinto que é a escrever que vou descobrir o que me aconteceu. Sinto que estou perto.
...
Depois de ter acabado a Faculdade e de ter casado com Julie, fui trabalhar para um jornal como repórter. Foi neste ofício que conheci Emilio, um mexicano que viria a ser um grande amigo meu, e Hughes.
Um ano depois, já Julie tinha conseguido concretizar o seu sonho e trabalhava numa revista de moda e Jack trabalhava na televisão como redactor e jornalista, começou, em queda livre, uma onda de desastres. Num curto espaço de tempo, cerca de um ano e meio, muita coisa aconteceu.
A primeira foi num dia em que reinava a calma no jornal, havia pouco trabalho a fazer, não se tinha passado nada de especial e as notícias mais importantes estavam já feitas.
Estava a conversar com Emílio, quando o telefone tocou.
— Redacção, boa tarde! — disse Emílio ao atender o telefone.
— Boa tarde! — disse uma voz grossa e rouca do outro lado — Com quem é que estou a falar?
— Está a falar com o Emílio, Sr. Fergunson.
— O William está por aí?
— Está aqui mesmo ao meu lado, Sr. Fergunson.
— Passa-lhe o telefone.
Emilio passou-me o telefone para as mãos.
— Ele que falar contigo. — disse Emílio, tapando o auscultador.
— Diga, Sr. Fergunson. — disse eu — O que é que se passa?
— Estou a estranhar o Hughes ainda não ter aparecido. — disse o Sr. Fergunson — Estás a fazer alguma coisa?
— Não, senhor. Neste momento não estou a fazer nada.
— Então, eu queria que tu e Emilio fossem até casa dele ver se está tudo bem.
— Deve estar. Ele não deve ter aparecido, porque como anda com alguns problemas com a mulher, e, como consequência disso, anda muito nervoso, deve ter ficado em casa a descansar, ou a reflectir.
— De qualquer maneira passem por lá. É que eu já tentei telefonar, mas ninguém atende.
Sorri para Emílio e desliguei o telefone. Fomos até à garagem a partimos em direcção à casa de Hughes. Pelo caminho íamos a falar sobre o assunto.
— Coitado. — disse eu — Ele está a passar uma fase muito má. Aliás, nem sei como é que ele tem conseguido aguentar.
— Mas afinal o que é que se passa? — disse Emílio — A mulher deixou-o, foi?
— Não foi só isso. Além de o ter deixado, fugiu com o “HungryCat”.
— O “HungryCat”, o pior “dealer” de todos os tempos? Aquele que a polícia anda à procura à mais de dois anos? Aquele que se supões ter ligações com a máfia?
— Esse mesmo. E o pior de tudo é que a mulher, antes de fugir, pediu-lhe uma grande quantia de dinheiro e Hughes recusou-se a pagar. Parece que a mulher telefona-lhe todos os dias a ameaçá-lo e a insultá-lo.
— Há quanto tempo anda isso a acontecer? — disse Emílio, impressionado com o que eu lhe tinha acabado de lhe dizer — Não deve ser assim há muito, porque senão eu já tinha sabido.
— Ele já anda nisto à três meses, só que não fala a ninguém sobre o assunto, excepto a mim.
— Já estamos a chegar!
Parei o carro mesmo em frente à casa de Hughes. Tocamos à porta, mas ninguém atendeu. Estranhei o facto de Hughes não estar em casa, nem ter aparecido ao trabalho, por isso resolvi dar uma volta à casa, alguma coisa não estava a correr bem. Sentia um arrepio pela espinha abaixo.
Espreitei por uma janela que dava para a sala, reparei que a luz estava acesa e chamei Emílio.
— Ele tem que estar em casa — disse eu — A luz da sala está acesa.
— Pode não estar ele.... — disse Emílio, com receio — Pode ser outra pessoa.
Tinha um pressentimento que as coisas não estavam a correr bem e continuei a volta pela casa. Descobri uma janela aberta, a janela do quarto. Tive de me apoiar nas costas de Emílio para poder chegar à janela. Mal me apoiei no parapeito da janela e espreitei para dentro do quarto, fiquei paralisado.
— Foda-se — disse eu, completamente desacreditado naquilo que os meus olhos estavam a ver.
Hughes estava pendurado com uma corda no pescoço, o rosto pálido ainda transmitia algum sofrimento, mas o pior de tudo era o cheiro que estava no quarto, Hughes já devia estar morto há mais de 24 horas.
— O que é? — perguntou Emílio, enquanto eu descia das suas costas— O que é que se passa?
Eu não consegui dizer nada, só apontava para a janela. Emílio intrigado com o que se estava a passar, subiu para as minhas costas e espreitou pela janela.
—Foda-se — disse Emílio.
— Isso já eu tinha dito.
— Ajuda-me a entrar no quarto, que eu vou-te abrir a porta.
Após algum custo, Emílio conseguiu entrar no quarto. Dirigi-me para a porta principal da casa e passado alguns minutos Emílio abriu a porta.
— Está um cheiro insuportável lá dentro. — disse Emílio.
Tapámos a cara com um lenço e fomos até ao quarto de Hughes. Revistámos o quarto à procura de alguma carta que Hughes tivesse deixado. De repente reparei que Hughes tinha alguma coisa na mão. Só com a ajuda de Emílio é que consegui tirar os papais que Hughes tinha na mão. Eram duas cartas. Uma era da mulher, a outra era dele.
Abri a carta da mulher. Dizia mais ou menos isto:

Meu grandessíssimo Cabrão:
Ou pagas aquilo que nós queremos ou seremos
obrigados a torturar-te até à morte? Mas não esperes que seja uma tortura leve,
não... vai ser uma tortura bastante demorada, para que sofras durante muitos
anos até à morte.

Muitas Felicidades,
dos teus queridos e
adorados:
Erika & HungryCat.

VI

Após ter lido a carta em voz alta, olhei para Emílio. Emílio pegou na outra carta e passou-ma para a mão.
— Prefiro que sejas tu a ler. — disse Emílio — Eu não tenho coragem.
Na carta estava escrito: «A William, a Emílio e a quem mais possa interessar...». Estremeci de medo antes de começar a ler a carta.

«Poucos sabem o sofrimento que passei nestes últimos meses. Ameaças, telefonemas a altas horas da noite, contribuíram muito para esse sofrimento.
Perdi toda a liberdade que tinha. Não podia sair de casa sem que uma pessoa anónima viesse à minha beira para me insultar ou ameaçar. Tentei mudar de casa e mesmo assim as ameaças não pararam, sentia-me observado, sentia-me seguido.
Não, não dava para continuar assim. Preferi morrer do que andar a viver com todo esse sofrimento.
Que me perdoem todos os meus amigos, que vão sofrer bastante com a minha morte, mas espero que percebam a minha situação.

Adeus.
Adeus mundo estúpido.
Adeus humanidade rancorosa.
Adeus Homem burro.
Adeus Mulher tentadora.
Adeus, Adeus, Adeus.................»

Ao ler a carta senti uma certa angústia e, também, uma profunda raiva. Desconfio que se Erika aparecesse à minha frente, eu não me controlaria e seria capaz de a matar.
Telefonei para a polícia e expliquei-lhes o caso. Pouco tempo depois já a casa estava cheia de fotógrafos e polícias.
— Então, — perguntou um polícia a Emílio — ele era ameaçado pela mulher e pelo seu amante?
— Era sim, Sr. Guarda. — respondeu Emílio — E temos aqui uma carta que prova muito bem isso.
Emílio entregou ao polícia as cartas que Hughes tinha guardado na mão.
— E não há mais cartas da sua mulher? — perguntou o polícia.
— Da minha mulher? — indignou-se Emílio — Mas eu não sou casado Sr. Guarda. Por acaso já tenho data de casamento marcada, mas.....
— Não é nada disso!! — interrompeu o polícia — Peço desculpa se fiz mal a pergunta, mas o que eu queria dizer era se não encontraram, ou não têm conhecimento, de mais cartas enviadas pela mulher do Sr. Hughes.
— Deve haver mais. — disse eu — Porque Hughes falou na sua carta de várias cartas. Mas, se calhar, ardeu-as ou rasgou-as.
— Sr. Dreed!! — disse outro polícia, ao entrar no quarto — Encontrei no escritório uma data de cartas enviadas pela Sr.ª Erika.
Enquanto polícia foi continuando as suas investigações, e depois de eu e Emílio termos deixado os nossos dados identificativos, eu e Emílio saímos daquela casa e fomos até ao jornal dar a notícia. Emílio ficou encarregado de fazer a cobertura da notícia, primeiro tinham pensado em mim, mas eu rejeitei.

...

Fiquei muito sensibilizado com a morte de Hughes. Era um dos meus melhores amigos que tinha morrido, e tudo devido à estupidez gananciosa da sua mulher. Ela própria não devia desconfiar que Hughes se fosse matar, aliás, ninguém esperava.
Tenho reparado que já estou aqui há alguns dias e ainda não comi nada, nem tenho fome.
Já é uma da tarde! O tempo passa depressa enquanto escrevo, também não se passa nada de especial aqui. Silêncio e solidão é só o que há. As únicas coisas que quebram este silêncio é a minha respiração e o barulho da minha caneta a escrever.

...

Tempos depois Jack disse-me que “HungryCat” tinha sido preso perpetuamente e que Erika tinha-se matado enquanto fugia da polícia. Ao que parece atirou-se de um prédio de dez andares. Devo dizer que fiquei, de certa forma, aliviado com esta notícia.
Uns dias mais tarde vim a saber que Mary Ann, que iria ser a futura mulher de Emílio, estava gravemente doente. Emílio andava a faltar ao trabalho, por isso já não falava com ele havia algum tempo e, obviamente, nada sabia acerca de Mary Ann.
Nesse mesmo dia, ao final da tarde, fui visitá-los. Emílio atendeu-me à porta. Tinha um ar esgotado e gasto. Parecia muito mais velho. Parecia que tinha envelhecido dez anos. Ao princípio não me deixou visitar Mary Ann, mas depois lá cedeu.
Mary Ann estava deitada na cama, pálida. Essa sim, essa tinha um ar bastante esgotado. Estava velha, muito mais velha do que ela era. Apresentava um ar de doença bastante grave.
— O que é que ela têm? — perguntei. — É algo grave?
— É e não é. — disse Emílio — Trata-se de uma gripe asiática.
— Uma gripe asiática? — perguntei, desconfiado — Tu não me fodas Emílio!! Eu sei que a gripe asiática é bastante forte, mas não põem uma pessoa assim.
Emílio chamou-me à parte e fomos até à sala de estar.
— Ela têm é uma gripe asiática.
— Lá estás tu Emílio. Porque é que não me dizes a verdade?
— É o que eu te estou a dizer. Ela está com uma gripe asiática, só que ela não tem anticorpos para a combater.
— Não têm anticorpos? Mas então ela....
— Ela está com SIDA, percebes? Ela está sem mecanismos de defesa. Ela está a morrer...
Devo dizer que fiquei bastante surpreendido com a calma com que Emílio me disse isso. Era preciso ter bastante coragem e força interior para dizer ao seu melhor amigo que aquela que será, ou poderá vir a ser, a sua mulher está a morrer.
Emílio disse-me que estava cansado, trabalhava o dia todo e não parava um segundo. Ou fazia chás, ou cafés, ou estava à beira de Mary Ann a fazer-lhe companhia. Perguntei-lhe se precisava de ajuda e Emílio ficou bastante grato com a proposta. Logo no dia seguinte fui para casa dele ajudá-lo a tratar de Mary Ann.
Essa ajuda demorou pouco tempo, pois poucos dias depois Mary Ann faleceu. Morreu abraçada a Emílio. Emílio demorou algum tempo a recompor-se. Eu queria falar-lhe de um assunto importante, mas nem me atrevi a falar disso nos primeiros tempos.
Poucos meses depois, já Emílio se encontrava recomposto, falei-lhe do assunto que me andava a incomodar.
— Sabes, Emílio, eu acho que devias fazer um teste.
— Um teste de quê?
— Um teste da SIDA. A SIDA pega-se facilmente e a Mary Ann pode ter passado para ti uma carga de vírus.
— Achas? Não sei, nós tivemos poucas relações sexuais e tivemos sempre precauções.
— Mesmo assim deves fazer o teste. Porque se der positivo ainda podes ter a hipótese de te salvares.
— Está bem. Eu vou lá esta semana.
Felizmente o teste deu negativo e libertei-me das preocupações que carregava durante alguns meses.

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