setembro 11, 2004

Morte e Salvação (II)

I


Sento-me aqui, numa tarde de verão, a escrever, lembrando-me do passado. Não sei muito bem onde estou. Sei que estou numa secretária a escrever sozinho, deserto.
Não me lembro muito bem o que se passou antes de ter vindo aqui parar. Lembro-me das coisas passadas já algum tempo atrás. Nem sei que dia é hoje, que horas são, nem em que ano estamos, só sei que estou em pleno verão.
Não sei muito bem porquê, mas só me consigo lembrar de coisas tristes e, raramente, me vem à ideia alguma lembrança de alegria. Terei vivido só de tristeza? Será que não houve nada alegre na minha vida? Porque é que só me lembro de desastres e mortes? Não! Alguma felicidade deve ter havido. Não me consigo lembrar qual, mas deve ter havido. Nem que tenha sido curta.

A primeira coisa que me lembro, da minha infância, é da morte de James. Andávamos no quarto ano da primária, se não me engano. Sei que estávamos a brincar junto a uma linha de comboios. A jogar futebol. Já era tarde, talvez umas 7:00. Estafados, cansados, íamos para casa descansar, mas para irmos para casa tínhamos que atravessar a linha férrea. Primeiro passou Carl, depois foi Jack, depois eu e Mick e, por fim, foi Eddie. James tinha-se atrasado, porque ainda estava a apertar os cordões, que se tinham desapertado durante o jogo. Lembro-me de ver James a correr para nós com a sua mochilinha às costas. A meio da linha deixou cair a mochila. Ficamos assustados, pois vinha um comboio, ao fundo, na trilha onde James tinha deixado cair a mochila.
— Cuidado!!! — gritamos nós — Deixa para lá a mochila.
Mas James nem nos ouviu. Voltou para trás para buscar a mochila. O comboio estava cada vez mais perto. Estava quase a atropelar James quando este saltou para a outra linha, já com a mochila. Azar dos azares!!!! Na outra linha vinha outro comboio, acabado de sair do túnel, em sentido contrário. James foi apanhado pelo segundo comboio, ficando partido em dois. Nem ele nem nós iríamos adivinhar que ia haver ali, naquela zona, justo naquela zona, um cruzamento de comboios.
É claro que se torna impossível explicar o que sentimos naquele momento e o que se passou a seguir. Só me lembro de, passado uns dias, ter ido à missa de enterro de James.
Pessoas, já com alguma idade, a chorar e a berrarem desalmadamente. Lembro-me de ver alguns colegas meus a chorar, a chorar muito. Eu? Eu? Não, eu não chorei. Não verti uma única lágrima. Exteriormente, é claro. Porque interiormente eu sentia-me magoado, perdido, sem saber o que se tinha passado e nem o que estava eu ali a fazer.
Mas depressa esqueci o assunto. Quer dizer, eu não me esqueci do assunto, pois recordo-me perfeitamente o que se passou. Só que não me diz nada. Não mexe comigo.
Engraçado!! Já em criança a morte não me surpreendia.
Recordo-me também dos meus 5º e 6º anos escolares. Era um miúdo sossegado, não muito inteligente, perdido de mim mesmo, sem saber nada de nada. Curiosamente, a cena que recordo claramente desses anos foi quando numa aula de madeiras quase ia matando um professor. Coisa que me valeu três dias de suspensão.
Estava no final do meu quinto ano. As aulas de madeira eram uma completa selva. Salve-se quem puder. Toda a gente andava atarefada a querer fazer tudo mais depressa que os outros.
A meio de uma aula, ouço alguém a chamar-me:
— William! — gritou Stephen — William!
— Diz! — respondi eu. — O que é que queres?
— Tens aí uma serra?
— Tenho!
— Então atira-ma.
Stephen estava a uns 50 metros de mim. Olhei para o professor. Ele não estava a olhar. Ainda bem! Assim não precisava de me levantar para entregar a serra. Virei-me e atirei a serra a Stephen. O professor virou-se entretanto e ZÁS. A serra espetou-se, mesmo em cheio, na anca do professor. O professor caiu ao chão e deu um grito agudo. Os meus colegas entraram em pânico. As raparigas gritavam, berravam e algumas chegaram mesmo a desmaiar. Os rapazes aos berros olhando atentamente para o professor. Eu fiquei completamente aterrado, olhando o professor, sem conseguir dizer uma palavra.
Entretanto, entrou uma funcionária na sala e levou o professor até ao médico da escola, que, mais tarde, o levaria até ao Hospital. Eu e Stephen fomos dirigidos até ao Conselho Directivo, onde nos interrogaram. No final, pediram-me para, no dia seguinte, passar por lá.
No dia seguinte, quando cheguei à escola, recebi a notícia de que o professor tinha levado 4 pontos e iria ficar uma semana no hospital. Dirigi-me ao Conselho Directivo, como me tinham solicitado no dia anterior, e pedi para falar com o presidente. Bati à porta.
— Entre! — disse uma voz lá de dentro.
Entrei. Numa grande secretária castanha estava sentado o presidente do Conselho Directivo, o Sr. Grismy.
— Bom dia, William! — saudou-me Grismy. — Como é que estás? Hoje estás com melhor cara. Ontem apareceste, aqui, branco como a cal.
— Já estou melhor, Sr. Grismy. — respondi eu — Obrigado.
O Sr. Grismy endireitou-se na sua cadeira, acendeu um cigarro e disse:
— Pois bem! Tu ontem fizeste uma coisa muito má. Nós sabemos que foi sem intenção e que nem te passava pela cabeça, a ti e ao teu colega, que aquilo poderia alguma vez acontecer. Mas o certo é que aconteceu e nós, o Conselho Directivo, estivemos, ontem, aqui a conversar até bastante tarde a tentar decidir o que deveríamos fazer. E chegamos a uma conclusão. Agora, eu quero que tu saibas que isto não é um castigo, nem que te estamos a culpar do que aconteceu. O que te vamos fazer é só uma espécie de aviso, para que, o que tu e o teu amigo fizeram, não volte a acontecer, certo?
Eu abanei afirmativamente a cabeça. Perguntei:
— E qual foi a sentença a que chegaram?
O Sr. Grismy sorriu:
— Não lhe chames sentença. Fica muito forte. Até parece que te vão matar. Chama-lhe antes interrupção das aulas, ou melhor, férias forçadas.
— Férias forçadas, Sr. Grismy?
— É um modo mais simpático de dizer suspensão.
— Suspensão? — disse eu, assustado — De quantas semanas?
— Não, não. — riu-se o Sr. Grismy — Não são semanas. Isso é para quem se porta mal. E tu não te portas-te mal, pois não? São só três dias.
— Três dias?
— Sim. Mas não te preocupes, porque não é nada de grave. São só umas curtas férias para que penses bem no que fizeste e para que não voltes a repetir. Agora vai para as aulas.
Levantei-me. Ia a sair quando o Sr. Grismy me chamou:
— William!
— Sim?
— Chame-me, já agora, o seu colega Stephen. Quero falar com ele, também.
— Ele vai ser suspenso?
— Vai, mas não lhe digas nada. Quero ser eu próprio a dar-lhe a notícia.
— Mas, Sr. Grismy, ele não fez nada. Ele está inocente.
— Não. Inocente ele não está. Foi ele que te disse para atirares a serra. Foi dele que veio a ideia. Se calhar se ele não tivesse dito nada, tu não tinhas atirado a serra. Vai. Vai lá chamá-lo.
Foi. Stephen apanhou, também, três dias de suspensão. Coitado. Tive pena dele na altura. O pai dele nunca chegou, nem nunca quis, perceber porque é que o filho foi suspenso. Na cabeça do pai dele a suspensão significa que o aluno se portou mal, ou fez alguma merda que não devia. A suspensão ser um modo de ensinar, de prevenir, ou até como forma de aviso, para que não aconteçam mais acidentes, era demais para a cabeça dele. Por isso toca de bater no miúdo porque este foi suspenso, mesmo não sabendo as razões.
Quando Stephen apareceu, na escola, passado os três dias de suspensão, parecia que tinha passado um autocarro por cima dele. Coitado! Ainda me lembro da carinha tristonha que ele tinha quando voltou para a escola.

II


Encontro-me, aqui, a escrever, sem saber onde estou. Sozinho, deserto, recordo-me do passado. Um passado onde poucas são as recordações alegres. mortes, desastres, sofrimentos, isso tudo pertence à minha vida. A felicidade, a alegria, o entusiasmo, ou passaram-me ao lado, ou, então, não tiveram qualquer significado para mim, pois não me lembro delas.

Por exemplo nos meus 8º e 9º anos escolares. Na altura em que eu acordei de um sono profundo que vinha dormindo há já vários anos. Tenho algumas boas recordações desses anos. É certo que também fiz algumas asneiras, mas isso toda a gente faz.
O 9º ano, principalmente, foi o ano mais incrível para a minha turma. Era uma turma bastante unida. Quando um tinha problemas, os outros ajudavam. E se um fazia asneiras, os outros também faziam, aliás, estávamos sempre a fazer asneiras. As empregadas da escola nem nos podiam ver à frente. Se havia qualquer problema na escola as primeiras suspeitas caiam na nossa turma.
Só tínhamos um pequeno problema: é que a escola ficava situada no centro de um bairro, que era muito mal frequentado. Brigas, lutas, pancadarias, boxe ao ar livre, eram frequentes naquela escola. Era raro o dia em que não houvesse, à hora do almoço, uma grande espera, à porta da escola, com paus, navalhas, facas e até armas. Era muito perigoso ir para aquela escola. Não nos podíamos meter com ninguém na rua, se não, corríamos o risco de levar com uma navalha.
Recordo um dia em que Michael teve a infelicidade de se meter com um cigano da zona. Nós tinhamo-lo avisado de que era perigoso meter-se com as pessoas que iam a passar na rua, podia passar alguém do bairro e aí haveria sérios problemas. Mas ele não nos quis ouvir. Um dia lá teve a infelicidade de acertar com um apagador num cigano. Ainda por cima num cigano. Claro, é fácil de prever o que aconteceu a seguir. 43 gajos armados até aos dentes com pedras, facas e navalhas à porta da escola à espera do «gadjo que acertou no Piquito». Ninguém conseguiu sair da escola. Os empregados não deixavam. Era ao ultimo tempo da tarde, toda a gente queria ir para casa.
Michael tremia por todos os lados, estava escondido no bufete, que se situava na parte de trás da escola.
— Eles vão-me matar, William. — disse Michael, a chorar — Eu não quero morrer. Chama a polícia. Por favor!!!
— Tem calma. — disse eu — Tudo se resolve! Descansa que ninguém te vai matar.
Dirigi-me até porta onde estava o pessoal todo ensalsichado, implorando para sair. Perguntei ao Sr. Rosenberg se já tinham chamado a polícia.
— Já, meu filho! — disse o Sr. Rosenberg — Já lhes telefonei à um quarto de hora. Devem estar aí a chegar.
Pois sim!! Só passado meia hora é que apareceu a polícia e, ao princípio, os ânimos não acalmaram, muito pelo contrário, pioraram. Mas depois a polícia conseguiu dominar a situação e nós pudemos sair, com segurança, da escola. Michael foi para casa num carro da polícia, para evitar qualquer ataque, ou perseguição, por parte dos ciganos.
Tudo voltou, depois, à normalidade. Já ninguém se lembrava do assunto, até um dia. Tinha passado mais ao menos um mês. Michael estava a faltar. Estávamos a ter aulas com a nossa Directora de Turma, a professora de Matemática, quando uma empregada bateu à porta.
— Entre. — disse a professora — A porta está aberta.
A empregada entrou olhou para nós de soslaio e disse:
— Sr.ª Doutora, estão a chama-la ao telefone. Parece que é da polícia.
A professora saiu esbaforida da sala. Nós ficamos mudos, olhando uns para os outros. Passado um quarto de hora a professora entrou na sala a chorar.
— Era, — disse a professora, aos soluços — efectivamente, da polícia a dizer que o aluno Michael Grain tinha sido encontrado morto, esfaqueado, a poucos metros da escola. O principal culpado já foi apanhado. O funeral é daqui a uns dias.
Toda a turma ficou imóvel, estática, muda, sem dizer uma palavra. Choravam todos em silêncio. Alguns, como eu, nem chegaram a chorar, limitaram-se a olhar pensativamente para o infinito.
Desta vez não fui ao funeral. A escola era para fechar no dia do funeral, mas os professores não deixaram, porque assim ninguém, ou quase ninguém, ia ao funeral. Achavam que nós éramos demasiado jovens para assistir a uma carga emocional daquele tamanho. Mesmo assim fomos obrigados a fazer um minuto de silêncio, em todas as disciplinas.
Poucos meses depois acabou a escola e depressa esqueci aquele incidente.

...

Está a escurecer. Acendo duas velas para continuar e escrever. Um silêncio profundo rodeia-me, o único barulho é o da minha caneta a escrever. Gostava de saber onde estou. O que é que aconteceu? Tento recordar-me, mas só me lembro de coisas antigas. O que hei-de eu fazer? Só me resta escrever aquilo que vou recordando, talvez, assim, me lembre do que aconteceu antes de eu ter vindo para aqui.

...

Julie!!! Sim, lembro-me perfeitamente de ti. Os teus cabelos castanhos caindo pelos ombros, os teus olhos azuis, profundos e tristes olhando para o infinito, a tua boca desejosa de um beijo. Ahhh! Julie! Como sinto a tua falta.
Conheci-te no 11º ano. Andavas tu perdida no mundo e vieste-me pedir ajuda. Não nos conhecíamos, mas mal te vi senti uma forte sensação que nunca consegui explicar. Cruzavamo-nos muitas vezes nos corredores da escola, falávamos de vez em quando nos intervalos. Um dia vieste ter comigo a pedir ajuda. Não sabias o que fazer e eu ajudei-te. A partir desse dia a nossa vida nunca mais foi a mesma. Sim, acho que valeu a pena ter vivido só para ter passado aqueles maravilhosos momentos contigo. Foram raras as vezes em que nós nos zangámos. Raras eram as vezes em que estávamos tristes. Toda a nossa vida foi vivida em conjunto.
Mais tarde viríamos a casar. Tal como toda a gente faz, também nós fizemos a despedida de solteiro. Lembro-me, como se fosse ontem, da minha despedida de solteiro. Convidei todos os meus amigos e algumas amigas. Tínhamos reservado um bar só para nós. Eram 10 horas da noite quando a festa começou. Bebidas, comidas, coktails, digestivos, aperitivos, e muito mais. Nada faltava, até droga lá havia. Já a noite ia alta quando Miles começou a sentir-se mal. O pessoal já estava tão bêbado e pedrado que nem ligou muito ao assunto. Jack e eu ficamos preocupados com Miles e fomos com ele até à porta do bar apanhar ar. Passado uns minutos Miles desmaiou. Mandei imediatamente chamar uma ambulância, mas nem por eu ter dito que era uma emergência, a ambulância não veio mais depressa. Demorou três quartos de horas a chegar. Já Miles parecia um morto.
Seguimos, todos, a ambulância até ao hospital. No Hospital só deixavam entrar duas pessoas. Entrei eu e Jack.
Estivemos lá até às 8:30 da manhã. Miles estava em coma profundo com uma overdose. Telefonei a Julie, explicando o que se tinha sucedido. Chegamos mesmo a pensar em mudar a data do casamento, mas não mudamos. Por isso às 15:30 começou a missa.
Eram quase 17:00, quando saímos da igreja. Dirigimo-nos até ao restaurante onde se ia realizar o copo de água. A festa durou até às 3:00 do dia seguinte. Estava eu a arrumar as minhas coisas, quando Jack veio ter comigo.
— William. — disse Jack branco como a cal — Tens uma chamada para ti do hospital.
Empalideci. Fiquei imóvel durante uns segundos, receando o pior. De repente, corri para o telefone. Sim, era verdade Miles tinha morrido.
Tinha acabado de desligar o telefone quando Jack me perguntou:
— Então? O que era? Fala. Diz alguma coisa. O que é que aconteceu com Miles?
— Miles morreu, Jack. — disse eu, ainda confuso — Overdose. Morreu à dez minutos atrás.
— Mas..... — disse Julie, aterrada — Mas isso é terrível.
— Sim, é terrível. — disse eu — Mas foi o futuro que ele escolheu. Foi o rumo que ele seguiu. Foi ele que quis assim. Nunca nos deu ouvidos.
Não disse mais nada, virei costas e continuei a arrumar as minhas coisas. Despedi-me de Jack e, juntamente com Julie, fomos para nossa casa. Acho que nunca ninguém teve uma noite de núpcias como a nossa. O nosso casamento começava bem....
No dia seguinte recebemos a notícia de que Vincent e Tom tinham também entrado no hospital, mas com uma coma alcoólica. Felizmente já estava tudo bem e nenhum deles corria perigo. Julie e eu decidimos que deveríamos ir para Lua de Mel o mais cedo possível. Queríamos abstrair-nos de tudo o que estava a acontecer à nossa volta. Queríamos estar sós, sem que ninguém nos chateasse.

Já está escuro. Quase não vejo o que estou a escrever. Acho que vou dormir. É engraçado, mas não se ouve qualquer ruído. Onde estarei eu? Que estarei eu a fazer? Porque será que me dá para escrever tudo o que me lembro? O que será que aconteceu?

III


Acordo! Olho à minha volta e só vejo o deserto. Sinto-me só. O sol já vai alto, devem ser mais ou menos onze horas. Vou dar uma volta para ver se vejo alguma coisa. Vaguei-o, vaguei-o e nada. Não encontro ninguém, mas ontem à noite pareceu-me ter ouvido música para estes lados. Onde estarei eu? Não sei. Volto para a minha secretária. Agora me lembro: o que faz uma secretária no meio deste deserto? Tantas perguntas e nenhumas respostas.

Quando andava no secundário, eu fazia muito desporto e andava sempre em jogos. O jogo que me terá marcado mais nessa época, foi com certeza a final das Inter-Escolas de Futebol. Andava eu no 12º ano. A minha equipa era: O Mark como guarda-redes; o Jimmy e o Richard à defesa; o John a meio campo; o Jack e eu a avançados. Recordo que faltavam dez minutos para acabar o jogo e estávamos empatados 2-2. Os adversários só davam porrada, não sabiam jogar sem dar um pontapé ou um soco a alguém, por isso já havia alguns lesionadas na nossa equipa. John coxeava, Richard sangrava da perna e do nariz e Jimmy tinha sido substituído por Charles, devido a ter fracturado o pulso.
De repente o avançado nº5 dos adversários ia isolado para a baliza, Richard tenta tirar-lhe a bola, mas não consegue. Charles foi a correr e para lhe tirar a bola foi-lhe directo aos pés. O nº5 caiu, deu duas cambalhotas no chão e foi a escorregar até bater com a cabeça no poste da nossa baliza. Levantou-se, quase de seguida, e disse que estava tudo bem. O pessoal estava completamente aterrorizado desviando o olhar, ele tinha a cabeça totalmente aberta e o sangue escorria por todos os lados. Ele sem dar conta do seu estado perguntou:
— O que é que se passa? Eu estou bem, só estou um pouco tonto, mais nada.
Pouco depois caiu para o lado, desmaiou.
Corri a chamar uma ambulância. Uns minutos depois lá apareceu a ambulância e levou o jogador para o hospital. Vim a descobrir mais tarde que o jogador chamava-se Raúl e que tinha vindo da América Latina. Fui visitá-lo duas semanas depois do acontecido. Quando entrei o médico ainda estava no quarto a examiná-lo.
— Boa tarde! — disse eu em voz baixa — Como se encontra o Raúl.
— Boa tarde! — disse o médico — O Raúl teve sorte, sabes? Teve sorte porque não perdeu nenhuma massa encefálica, por isso não deve correr grandes riscos. Mas ele tem uma grande fractura cerebral, o que pode levar a um traumatismo bastante profundo. Ele, por enquanto, não pode falar, mas pode ouvir. Queres ficar a falar um bocado com ele?
— Se não se importar...
O médico saiu da sala, deixando-me sozinho com Raúl. Fiquei um bom bocado a conversar com ele. Ele, como não podia falar, respondia-me com acenos ou com gestos.
Dois meses depois Raúl saiu do hospital. Mas nunca mais foi o mesmo, tinha um traumatismo craniano muito profundo. Não se percebia o que ele dizia e nunca mais conseguiu andar direito. Tinha ido visitá-lo a casa. Devo dizer que fiquei bastante impressionado com o que vi. O que te fizeram, Raúl? O que é que te aconteceu? Eras um rapaz tão jovem, tão novo e de um momento para o outro ficaste perdido para sempre. Sim, Raúl, tive pena de ti, tive bastante pena de ti, embora não te conhecesse de lado nenhum.

...

Está calor. Um calor abrasador. Tiro a camisa, fico só em T-Shirt. Relembro ainda Raúl e o seu acidente. Não ouço um único barulho à minha volta. Sinto uma vontade irresistível de escrever à medida que me vou lembrando do passado. Ainda não sei onde estou, mas tenho uma leve impressão de que se continuar a escrever, vou-me lembrar do que aconteceu e como vim aqui parar.

...

Acabado o 12º ano, eu, Julie e Jack, fomos para a faculdade. Esses anos foram muito maçadores. As aulas eram chatas, não se fazia nada de excitante e tínhamos muito pouco tempo disponível. Lembro-me de, a meio do quarto e último ano, pouco antes do meu casamento com Julie, ter havido um torneio de futebol académico. A minha equipa tinha chegado à final. Na final tivemos que jogar com outra faculdade. Por azar as duas faculdades eram rivais, o que tornou o jogo muito competitivo e com muitas faltas.
Tinham só decorrido dez minutos e já tínhamos mais de metade da equipa lesionada. Eu tive de sair devido a uma grave lesão na perna esquerda, mas fiquei sentado no banco, junto ao treinador, a ver o jogo. Estávamos quase no intervalo quando os adversários atacam. Joseph, nosso guarda-redes, partiu em direcção à bola, atirou-se para cima do adversário e, ao cair, partiu uma perna. Eu tive de entrar outra vez em campo, porque já não tínhamos mais suplentes no banco, e substitui Joseph na baliza.
A segunda parte do jogo teve menos faltas. Lembro-me de olhar para o placar e ver que faltavam quinze minutos para acabar o jogo, olhei em frente e vi Tom a atacar. «Vai dar golo», pensei eu. Tom passou para Jerry, este foi direito à baliza, mas um defesa adversário tapou-lhe a jogada com um empurrão, Jerry caiu e foi a escorregar até ao poste esquerdo da baliza, onde bateu fortemente com as costas. O árbitro apitou para pénalti. Foi o descalabro total, os jogadores pegaram-se todos à pancada e os treinadores corriam atrás do arbitro para lhe foder o focinho. Eu fui ter com Jerry e perguntei-lhe se estava bem.
— Eu estou bem, — disse Jerry — só que não me consigo mexer.
Fiz um sinal ao médico e ele veio logo a correr. Examinou Jerry de alto a baixo, afastou-se um bocado e chamou-me. Fui.
— Ele tem a coluna partida. — disse o médico com um ar bastante sério — Temos de levá-lo urgentemente para o hospital, pode ser que ainda se salve de ficar paralítico.
Um quarto de hora depois, chegou a ambulância. Os jogadores continuavam todos à pancada e os enfermeiros tiveram de passar pelo meio deles. Pousaram Jerry na maca e rapidamente poseram-no na ambulância. Eu fui chamar Jack a casa.
— Jack!! — disse eu, mal Jack abriu a porta de casa — Anda comigo até ao hospital. O Jerry ficou gravemente ferido durante o jogo.
— Mas.... — disse Jack, aterrorizado — Mas o que é que ele tem? O que é que lhe aconteceu?
— Anda embora. — disse eu, apressado — Conto-te tudo pelo caminho.
Jack vestiu o casaco e entrou no meu carro. Pelo caminho fui-lhe explicando tudo o que tinha acontecido. Quando chegamos ao hospital, mandaram-nos esperar numa salinha apertada. Passado poucos minutos um médico veio ter comigo.
— É o Sr. William McGrow? — perguntou-me ele.
— Sou. — respondi eu, enquanto me levantava — Como está o Jerry?
— O Jerry está neste momento a ser examinado. — disse o médico — Ele partiu a coluna e fracturou mais alguns ossos. Mas as probabilidades de ele voltar a andar são muito reduzidas.
— Mas ele vai ficar totalmente paralítico? — perguntou Jack — Ou há possibilidades de ele se mexer em outras partes do corpo?
— É exactamente isso que estamos a ver. Ele deve ficar paralisado da cintura para baixo. Agora vamos ver se conseguimos salvá-lo da cintura para cima.
O médico retirou-se. Acendi um cigarro e fiquei à espera de mais notícias, Jack foi telefonar para casa de Jerry a informar a família do sucedido. Passado meia hora o médico voltou a aparecer.
— Tal como eu vos tinha dito, — disse ele, com um ar sério — o Jerry só ficou paralisado da cintura para baixo, de resto pode movimentar todos os membros.
— Então, quer dizer que.... — disse eu, hesitando — ...que ele vai ter que andar de cadeira de rodas para o resto da vida?
O médico olhou para mim, olhou para Jack e disse:
— Infelizmente sim.
— Podemos visitá-lo? — perguntou Jack.
— Claro que sim ele está no quarto 432.
Fomos até ao quarto e quando chegamos Jerry estava na cama ainda inconsciente.
— Ele deve estar quase a acordar. — disse o médico — O efeito da anastesia dura pouco tempo.
Efectivamente, passado pouco tempo Jerry acordou.
— Bem, — disse o médico — se me permitem eu vou-me retirar.
— Com certeza. — disse eu — Muito obrigado pela sua ajuda.
Eu e Jack ficamos um bocado a falar com Jerry. Quando íamos a sair, estavam a chegar o pai e a mãe. Tivemos um bocado a falar à porta do hospital. Parece incrível que a universidade não os tivesse contactado, eles só souberam o sucedido quando Jack lhes telefonou.
Durante quase um mês Jerry não apareceu na universidade. Eu abandonei o desporto, tinha acontecido muita coisa, Raúl tinha ficado incapacitado de pensar e mal conseguia falar e depois foi Jerry que ficou paralítico.

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