setembro 20, 2004

Crónicas do Porto

Este texto foi uma tentativa de voltar a escrever um conto. Tentar voltar a reencontrar os meus velhos devaneios e fazer uma história que não fosse mórbida nem rondasse o assunto da morte...
Após algumas ideias expostas, acabei por abandonar a ideia, devido ao "lugar-comum" em que a história se estava a formar. No fundo acho que me apercebi que tinha perdido o dom de criar devaneios que não fossem mórbidos.
De qualquer maneira fica aqui o princípio da história e o Prólogo...

Crónicas do Porto

Prefácio
A verdade é que, após dois anos de interrupção, já tinha saudades de me sentar atrás de um computador e escrever. Foram três anos consecutivos a escrever e de repente, de um momento para o outro, deixei de escrever. Digamos que depois da minha última ficção “Morte e Salvação” tive um certo receio de voltar a escrever. Talvez por ter atingido níveis “filosófico-suicídas” que nunca poderia imaginar atingir. Talvez por achar que dificilmente conseguiria escrever algo tão intenso e real outra vez. Talvez a minha mente, ao ir tão longe, me tenha assustado. Talvez....
Mas, passados dois anos, resolvi sentar-me outra vez em frente ao computador, mas desta vez não me apetece voltar às questões filosóficas, nem à incessante procura pela Morte (tema corrente nos meus últimos textos...). Desta vez resolvi reactivar o meu já saudoso lado negro e voltar ao meu humor destrutivo e critico.
No quotidiano do dia a dia acontecem sempre coisas bizarras e interessantes, algumas delas dignas de serem retractadas ou filmadas.
Foi exactamente esse quotidiano que me motivou a escrever estas crónicas. Tive de voltar aos meus tempos de escola para me lembrar de muitas situações. Tive de ir buscar ao meu “baú mental” recordações já esquecidas pelo pó e pelo tempo. Nunca tinha arriscado escrever crónicas, mas devo admitir que é um teste muito interessante. Nem que seja só pelo facto de voltar a passar por certas cenas já esquecidas....
Julho de 2001
Hugo Valter Moutinho
Capítulo I
Manhã
8:00
Era um dia como todos os outros. Os carros “correm” de um lado para o outro, atarefados para chegarem ao emprego a horas. Ouvem-se algumas buzinas de alguns apressados que tentam sempre passar por cima de todos porque vão sempre atrasados.
Nada de novo.
Ao fundo ouvem-se os gritos provenientes do bairro social:
— Oh José!!!! Joséééééééé!!! Anda cá, caralho!!! Anda cá!!!!!
— Já bou!!!! Calma mulher!! Não bês que eu estava a falar com a Sr.ª Maria?? Tem calma!!!
— Por isso mesmo! Já te disse que não te quero ver com essa vaca!!! Anda mas é para dentro antes que eu te foda a boca.
— Foda-se, mulher! É sempre a mesma merda! Não pode estar um homem a conbersar descansado que...
Fechei a janela. Não me apetecia estar ali a ouvir a conversa dos outros, até porque já sei o que ia acontecer a seguir: Vem a Sr.ª Maria a correr tirar satisfações: «Mas estás a chamar vaca a quem??? Minha grande puta!!! Pensas que toda a gente é como tu??? Que se deita com o primeiro que lhe aparece à frente??? E que já dormiu com todos os homens do bairro??? Eu até tenho pena do teu marido, que já tem que se abaixar para entrar em casa!! Qualquer dia já nem consegue entrar!!!» E depois continua a festa, a outra responde e passam a manhã toda a discutir uma com a outra, enquanto que o homem, aproveitando a deixa, foge para a cama da vizinha do 5º esquerdo.
Nada de novo.
Depois do banho fui tomar o pequeno almoço acompanhado pela minha fiel companheira que, excitada, bate furiosamente o rabo à espera de algum pedaço de comida que possa cair, chorando desalmadamente se, por acaso, não lhe dou um bocadinho de pão.
Nada de novo.
Preparei-me para ir ao banco levantar dinheiro, pois não me apetecia ir de carro e não tinha dinheiro para as senhas do autocarro.
Ao sair de casa reparei que as duas mulheres ainda continuavam a discutir, desta vez já com uma numerosa plateia a assistir e a intervir:
— É verdade! É verdade que eu bem vi!! — gritava energicamente um velhota rouca.
— Eu juro, pela saúde da minha querida mãezinha que está no hospital, que o que eu disse é verdade!!! Eu vi com este olhinhos que a terra há de comer!! — dizia uma rapariga que ainda estava de pijama e chinelos.

Capítulo II
Banco
Cheguei ao banco e, para variar, deparei-me com uma fila enorme. A maior parte era só idosos. Dirigi-me para o final da fila mais curta. Olhei atentamente para a frente. Devia ser mais ou menos um quarto de hora de espera. Tinha tempo...
Passado cinco minutos ainda não tinha saído do sítio! À minha frente encontrava-se um senhor de idade que mal se conseguia aguentar em pé. Apesar da sua frágil bengala o velho inclinava-se todo para trás tentando equilibrar-se, ficando eu a aguentar com todo aquele peso. Mesmo com alguns empurrões fortes o velho não saia de cima de mim.
Para melhorar a situação, mesmo por trás de mim estava outro senhor de idade que devia estar com uma pneumonia pois não parava de espirrar para cima de mim. Ao princípio nem me importei, mas depois comecei a ficar com o pescoço todo molhado........ Eu ainda perguntei ao homem se não tinha um lenço, mas o homem, que era surdo como uma porta, disse-me que só ia ao banco duas vezes por mês.
Ao meu lado esquerdo estava uma simpática senhora com os seus 150 anos. Ela mal conseguia andar e muito menos segurar na caderneta bancária. Já tinha deixado cair a caderneta umas três vezes e eu, muito simpaticamente, baixei-me as três vezes para apanhar a caderneta da senhora. Esta muito agradecida sorriu-me três vezes, mostrando a sua “linda” boca desdentada.
No balcão estava também uma velhinha a pedir informações sobre o Multibanco. A rapariga da caixa esforçava-se ao máximo para explicar, mas a velhinha continuava sem perceber nada.
— Mas... Eu meto o cartão lá dentro da máquina????
— Sim. Depois só tem que marcar o seu código pessoal e seleccionar a opção que quer.
— Mas se a máquina come o cartão como é que eu selecciono o que quero??
A rapariga desesperada voltava a repetir tudo.
Passado vinte minutos eu já tinha dado 12 pequenos passos. A velha continuava no balcão a pedir informações. Os passos que dei foram porque algumas pessoas desistiram de esperar e foram-se embora.
— Mas como é que a máquina sabe quanto dinheiro tenho de levantar?? — perguntava a velhinha, que cada vez percebia menos. A rapariga da caixa já estava completamente despenteada de tantas vezes passar a mão no cabelo. A sua voz já estava rouca e os seus olhos ficavam vermelhos de raiva sempre que olhava para a velha. Os olhos dela e os nossos. Apetecia-me ter ido lá e estrangular a velha ali mesmo em cima do balcão e depois voltar-me para trás para receber os aplausos efusivos de quem estava ali, como eu, à espera.
O velho da frente continuava apoiado em cima de mim. O de trás continuava a tossir, com mais frequência e mais energicamente. Já tinha o pescoço e parte das costas completamente ensopados. A simpática velhinha que continuava ao meu lado já tinha deixado cair mais umas 12 vezes a sua caderneta e eu já me tinha baixado 11 vezes para a apanhar. Sim, só 11 vezes porque uma das vezes foi o velho que se encontrava à minha frente que “tentou” apanhar a caderneta à simpática senhora. Eu digo “tentou” por quando se ia a baixar desequilibrou-se caindo para a frente e empurrando as pessoas que se encontravam à sua frente que por sua vez quase esmagavam as pessoas que estavam ao balcão. Caos total!! Finalmente acabou por ser um jovem que apanhou a caderneta do chão e ajudou-me a levantar o velho. Tanto eu como o jovem estava-mos completamente perdidos de riso, algumas pessoas tentavam conter o riso, outras deitavam olhares assassinos para o velho.
Após 23 passos pequenos, 5 passos médios, 2 passos grandes, 45 encostos do velho da frente (e 37 empurrões que eu lhe dei), 126 espirros do velho de trás, 15 cadernetas apanhadas do chão e 15 sorrisos desdentados, consegui, finalmente, chegar ao balcão. Tudo o que queria era um simples levantamento. Mas depois de tudo o que eu passei, aproveitei e pedi o cartão Multibanco, o cartão Visa, o cartão Mastercard, o acesso à conta via internet e tudo o mais que fosse preciso para eu poder movimentar a conta sem ter que voltar ao banco.
No final acabei por convidar a rapariga a almoçar comigo, já passava da 1h, eu estava cheio de fome e ela estava visivelmente a precisar de descansar um bocado. Ela aceitou prontamente.
No final ela agradeceu o convite para almoçar, trocamos números de telefone e cada um foi para seu lado. Ela outra vez para o banco e eu fui apanhar o autocarro.
2001

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