março 20, 2009

A menina de cabelo dourado

Conto infantil que se deve esconder de adultos gulosos

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Todos os dias antes de ir para a escola a menina de cabelo dourado abria o armário para se olhar ao espelho e ver se não se tinha esquecido de nada. Era um mero passatempo, fazia-o só por fazer, não era por vaidade. Até que um dia, para seu grande espanto, ao abrir o armário reparou que do outro lado não se encontrava um espelho, mas sim um céu azul com nuvens.
Ao princípio não quis acreditar e esfregou os olhos com alguma força. Olhou novamente e viu que o céu azul ainda permanecia do outro lado do armário. Fechou e abriu a porta do armário, olhando à volta para se certificar de que ainda se encontrava no seu quarto. Nada de novo, nada de espelho. Dentro do armário continuava o mesmo céu azul. Meteu a cabeça dentro do armário, olhou atentamente para a paisagem e com grande surpresa reparou que o céu não tinha chão.
As nuvens iam passando lentamente e quando finalmente se aproximaram do armário a menina pode ver que eram feitas de algodão doce. A curiosidade invadiu-lhe o corpo e, ganhando coragem, saltou para a nuvem mais próxima. Provou um pouco da nuvem para ter a certeza de que eram feitas de algodão doce e alegremente confirmou a sua suspeita. “E é dos bons!” disse para si mesma.
Após se deliciar saltou para a nuvem seguinte, apesar de doces as nuvens não eram muito cómodas para se ficar muito tempo parada pois o açúcar ia-se derretendo em contacto com a sua fina pele. A melhor maneira de investigar o local era ir saltando de nuvem em nuvem. “Sempre é menos peganhento”, pensava.
Quando chegou à décima quarta nuvem, olhou para trás e viu que o seu armário era quase um ponto no horizonte. À sua volta só se encontravam nuvens e em baixo avistava-se umas pequenas formas que deveriam ser umas montanhas. “Devem ser altíssimas mas daqui parecem pequenas tartarugas”.
Subitamente ouviu ao longe um pequeno ruído. Não se apercebeu logo de onde vinha o som e teve de se concentrar com força para ouvir com atenção. Era uma espécie de miar que vinha do seu lado direito e desatou a saltitar rapidamente nessa direcção. Algumas nuvens depois viu, para seu espanto, um gato feito de chocolate preto que parecia estar preso numa nuvem. O gato mal a viu calou-se fitando-a muito atentamente e num miar suave apontou-lhe para a pata traseira que estava submersa na nuvem. “Pobre coitado”, pensou ela enquanto se aproximava do gato para examinar cuidadosamente a pata. “A sua pata esta-se a derreter com o açúcar da nuvem”,disse “acho que o consigo ajudar” e com muito jeitinho desenterrou a pata da nuvem. “Já está meia derretida e mole. Isto deve doer, 'tadinho.” pensava enquanto tentava modelar novamente a pata do gato à semelhança das outras. No final deu-se por satisfeita com o resultado pois quase nem se notava a diferença.
O gato deitou-se no colo da menina e ronronou em sinal de agradecimento mas, de repente levantou-se, olhou em volta e saltitou rapidamente de nuvem em nuvem, tão rápido que a menina assustou-se sem saber o que se tinha passado. “Espera por mim!” e seguiu-o com algum custo porque ele era rápido e ágil demais para a pobre menina. À medida que iam correndo pelas nuvens a menina apercebeu-se que o gato dirigia-se em direcção a umas nuvens mais escuras, meio acinzentadas.
Já corriam há uns minutos quando um vulto montado numa nuvem cinzenta começava a aproximar-se no horizonte. O gato parou finalmente miando baixinho para a menina que tentava chegar à sua nuvem arfando compulsivamente. Ela olhava atentamente para o vulto que se aproximava vendo que afinal se tratava de um belo rapaz. “Até parece um príncipe”, suspirou internamente.

– Afinal estavas aqui safado! Andei a manhã toda à tua procura – disse o “príncipe” ao chegar perto do gato.

– Estava com uma pata presa numa nuvem. Tive de o ajudar a soltar-se. – respondeu a menina.

– E tu o que estás aqui a fazer? – perguntou ele que ainda não tinha dado pela presença da rapariga – Não devias estar aqui. Ainda é muito cedo para andares por aqui.

Ela explicou-lhe o que lhe tinha acontecido aquela manhã e como tinha aparecido ali, enquanto o “príncipe” afagava o gato feito de chocolate preto e a escutava com atenção.

– Ah! – disse o “príncipe” quando a menina acabou de contar a história – Isso explica muita coisa, mas não podes ficar aqui muito tempo. Houve um erro. Ainda não pertences a este lugar, ainda tens muito que aprender antes de vir para cá.

– Não me podes levar contigo? – perguntou a menina com um olhar doce – Gosto muito deste sítio e não quero voltar já para casa.

– Não! Tens de voltar para o teu armário rapidamente antes que ela te descubra.

– Ela? – perguntou ela com ar curioso – Quem é ela?

– É uma senhora muito velha e às vezes muito má! É ela que transporta as pessoas para o outro lado – respondeu o “príncipe” apontando para as nuvens escuras – Se te vê por aqui vai querer levar-te e aquele lado é muito mau. Não serve para ti, minha pequena. Tens de partir já!

– Mas... e tu? Vais ficar aqui sozinho? Posso ao menos visitar-te de vez em quando? – lacrimejou.
– Não te preocupes comigo. Eu também já pertenço a este lugar há muito tempo e quando chegar a altura certa havemos de nos encontrar, mas ainda é cedo. Segue aquelas nuvens e irás dar ao teu armário.

A menina fez um pequeno beicinho enquanto olhava para o seu “príncipe” e afagava carinhosamente o gato de chocolate preto.

– Adeus gatinho. Vou ter saudades tuas. – disse com uma voz trémula, inclinando-se depois para dar um beijo na face do “príncipe”.

– Agora vai e não olhes para trás. - disse ele apontando-lhe o caminho e a menina partiu em direcção ao seu armário.

O caminho ainda era um pouco longo e quando finalmente a menina chegou ao armário já se encontrava cansada. Antes de entrar ainda olhou à sua volta em forma de despedimento e recolheu uma boa porção de nuvem. “Seria um desperdício não levar um pouco deste algodão doce para casa” pensou.
Ao entrar no seu quarto foi surpreendida pela sua mãe que entrara naquele exacto momento.

– Ainda estás aí? – resmungou a mãe – Vê se te despachas, senão chegas atrasada à escola. O pequeno almoço já deve estar frio. Nem parece teu. O que se passa contigo? Parece que estás nas nuvens.

A menina olhou confusa para o pequeno relógio que tinha ao lado da cama. Só se tinham passado dez minutos desde que ela tinha entrado no armário, mas sabia que isso não era possível pois tinha passado a manhã inteira com o gato e o “príncipe”. “Teria sido um sonho?” pensou. “Não. Ainda tenho aqui algum algodão doce e as minhas roupas estão peganhentas” e voltou a olhar para dentro do armário, mas só viu o seu reflexo no espelho.

Os anos foram passando e a menina cresceu. Nunca falou a ninguém da sua aventura, mas todos os dias de manhã abria o seu armário na esperança de encontrar novamente o céu azul do outro lado, mas nunca encontrou nada além do velho espelho. Até que uma manhã, já a menina estava velhinha, deitada na sua cama, muito doente, quando a porta do seu armário se abriu. Com a pouca força que lhe restava ela sorriu na esperança de rever o seu “príncipe”. Mas o que passou daquela porta não era o “príncipe”. Era uma figura estranha vestida de preto da qual mal se via a cara mas que aparentava ser uma velha senhora. “Deve ser a tal senhora de que o “príncipe” me falou.” pensou a menina assustada mas, mal a velha senhora se aproximou, sentiu uma paz interior que só tinha sentido no meio das nuvens de algodão doce. Estendeu-lhe o braço e calmamente fechou os seus olhos soltando um pequeno suspiro. A velha senhora fez-lhe um festa na testa e voltou para o armário.
O “príncipe” encontrava-se numa nuvem do lado de fora do armário e esperava ansiosamente o regresso da velha senhora. Quando esta saiu, saltou imediatamente para a nuvem mais próxima e fixou-a com uns olhos esbugalhados. “Posso finalmente ficar com ela?” pensou sem chegar a abrir a boca. A velha senhora pôs-lhe a mão no ombro e acenou afirmativamente com a cabeça. Ele agradeceu e entrou no quarto da menina que dormia agora profundamente. Afagou-lhe os longos cabelos que outrora tinham sido dourados, pegou na velha menina ao colo e transportou-a para dentro do armário.
Saltitou por entre as nuvens durante alguns minutos até chegar à décima quarta nuvem, que era suficientemente grande para conseguir pousar a menina e ainda não a tinha pousado totalmente quando ela abriu os olhos. Ela notou, para sua grande surpresa, que tinha voltado a ser uma pequena menina, tal como da primeira vez que ali tinha estado, sorriu e abraçou o “príncipe” fortemente até que o som de um miar a fez olhar para trás. Era o gato de chocolate preto que tinha aparecido para a visitar e trazia com ele a sua família: uma gata feita de chocolate branco e dois filhotes de chocolate de leite. Perante este cenário, a pobre menina não conseguiu conter uma pequena lágrima que lhe escorria agora pela face.

─ Bem vinda. ─ disse o “príncipe” ─ Portaste-te bem e finalmente chegaste aqui.

─ Tive que esperar muito para isso, ─ disse ela comovida - mas valeu a pena. Tinhas razão, ainda era muito cedo. Não estava preparada para desfrutar deste mundo.

─ E ainda não viste nada. Há mais meninos como tu. Anda! ─ disse ele pegando na mão da menina com um enorme sorriso ─ Vou-te mostrar o que está para lá das nuvens.

E juntos dirigiram-se para uma zona onde as nuvens eram de um tom rosa muito forte.

4 comentários:

Margarida disse...

Também tenhho saudades das nossas imperiais após as Quintas...
Nunca uma cervejinha me soube tão bem... a mim que nem gosto de cerveja! :)

R.Rosmaninho disse...

Gosto do teu conto. Embora esteja escrito de uma forma que os mais novos entendem, não me parece, no entanto, dirigido a eles. Se calhar não concordas...
Quanto às tempestades, não costuno permitir que se instalem, embora goste de escrever sobre elas. às vezes nem são minhas, são de outros com quem falo.

Hugo Valter disse...

Admito que o conto é um pouco "dark", mas esse lado obscuro já é uma constante nos meus textos (tirando os devaneios, claro).
Acho que apesar de ser um conto "dark", não deixa de ser infantil (ok, o final podia-se "limar" um pouco...) e pela primeira vez acho que tenho uma espécie de "happy ending" num texto meu. :)

Já é bem mais positivo do que o Olhos Azuis ou o Confettis", mas esse era assumido como terror.

R.Rosmaninho disse...

Deve ser o meu lado maternal a funcionar. Nunca escondo a realidade dos meus filhos e talvez por isso mesmo gosto que as histórias para eles sejam mais suaves...nas imagens, porque na forma, acho o teu conto bastante suave, bonito.
De qualquer forma eu não devo ser um bom exemplo, porque na parte em que a pata do gato está a desfazer-se no açucar eu já começo a impressionar-me. Enfim...
Continuação de boas "escrituras"!