dezembro 28, 2007

Anjo Mortal

Mataste-me naquela festa, onde te encontrei passados uns anos. Naquele momento em que os meus olhos pousaram em ti e sorri, tu retribuíste-me um sorriso sincero, mas os teus olhos traziam amargura. Foi nesse exacto momento que morri.
Recordava-me de ti com um sorriso aberto, os teus olhos vibravam ao sabor dos teus cabelos e eras eléctrica como uma formiguinha que tinha encontrado um doce.
Via-te como um anjo alegre com quem tinha partilhado alguns bons momentos, que retive saudosamente no meu baú da memória. Mas naquela noite tudo mudou.
Mataste-me sem saberes, espetaste-me uma faca no coração e entristeceste-me as entranhas. Nesse momento as imagens idílicas que se encontravam no baú entraram em combustão e carbonizaram-se. A cor do teu cabelo, o teu cheiro, o teu rosto e todos os teus sorrisos, deram lugar a uma imagem triste e melancólica.
Morri naquele momento exacto em que me apercebi que o tempo tinha passado por nós, cobrindo a nossa curta e breve relação, que a vida tinha sido tão dura para ti como foi para mim, que tu tinhas amadurecido (quiçá envelhecido) e já não eras o anjo alegre e inocente que jazia no meu baú das memórias. O anjo do baú deu lugar a um ser humano, as imagens alegres transfiguraram-se em dias de tempestade, da felicidade para a agonia, a esperança virou-se para o desespero, o sonho diluiu-se com tudo o resto.
Morri exactamente por isso. Ao perceber que já não poderíamos voltar a repetir o passado, que já não éramos iguais, que a vida nos separou cruelmente.
E tu mataste-me ao mostrar que afinal não eras um anjo, mas um simples ser humano, mortal, como todos nós.

dezembro 02, 2007

Confettis

O espectáculo tinha acabado. Os miúdos rompiam furiosamente pelo o palco a convite dos palhaços. A anarquia estava lançada. Correrias, gritos estridentes e empurrões, reinavam naquela barafunda de miúdos eléctricos que pulavam pelo palco como se estivessem a ser electrocutados. Todos queriam brincar com o Urso Bob, o carro com luzes que piscam e a boneca que lança confettis.

Marlene, de 6 anos, apreciava esta cena de longe. Tinha ido ao teatro acompanhada pelos pais, enquanto todos os outros miúdos tinham sido levados pelo colégio que frequentavam. Era a única criança que tinha ido “sozinha” ao teatro, ou pelo menos era assim que se sentia. Apreciava a saudável anarquia que se passava à sua frente e olhava de vez em quando para a boneca que lança confettis.

Era uma boneca grande, muito engraçada que de vez em quando “cuspia” confettis enfeitando o palco com pequenas fitas que desciam lentamente como se de neve se tratasse. Era sem dúvida a atracção preferida dos miúdos. Os olhos de Marlene entristeciam. Também ela gostaria de ir brincar com a boneca. “Mas nunca com aqueles selvagens!”, pensava, “Estou muito melhor aqui ao pé dos meus pais, que gostam de mim e me protegem.”

De repente o mais inesperado aconteceu. Os pais de Marlene perguntaram-lhe se ela não queria ir brincar para o palco. Marlene ficou aterrorizada, branca, as suas feições transfiguraram-se, as suas pernas tremiam enquanto se encolhia lentamente no pequeno degrau onde estava sentada.

Não! Isso nunca!, pensava, Ir ali para o meio daqueles selvagens, que não conhecia de lado nenhum, para aquelas bestas que só sabem gritar, saltar e correr como loucos, empurrando tudo e todos os que tivessem à sua frente. Não! Ainda se podia magoar. Não! Não queria saltar para o palco e ser espezinhada por um grupo de miúdos raivosos, que além de lhe baterem (e talvez a matarem à paulada) ainda a cortariam em postas para ser devorada pelo Urso Bob. Não! Isso Nunca!

Os pais estranhando este tipo de comportamento vindo de Marlene, tentavam perguntar o porquê daquela súbita atitude. Tentavam convencê-la a ir para o palco com palavras mas a pequena Marlene limitava-se a abanar furiosamente a cabeça e a encolher-se mais no seu pequeno degrau. Não! Já tinha dito que não. Olhou mais uma vez para a boneca. Era uma boneca linda e no fundo do seu coração Marlene queria ir brincar com ela e dançar no meio da chuva de confettis, mas nunca com aqueles animais ali aos saltos. Feito isto, pequenas lágrimas escorreram pelo pequenos rosto de Marlene. Um sensação muito confusa passava-se dentro de si; por um lado queria ir brincar, mas por outro sentia medo daqueles estranhos que não conhecia de lado nenhum. Preferia ficar ali ao pé dos seus pais, pois assim estaria protegida, mas os pais não pareciam querer isso. Afinal queriam que ela fosse para o meu daqueles loucos. Levantaram-se calmamente e perguntaram mais uma vez se ela não queria ir brincar para o palco.

Se pequenas lágrimas escorriam pelo rosto de Marlene, agora corriam ininterruptamente. Marlene não queria acreditar no que os seus próprios olhos estavam a ver: os seus próprios pais, que a deviam proteger e amar, queriam forçá-la aquilo que do seu ponto de vista inocente lhe parecia ser a morte certa. Não! Não queria ver o seu sangue a escorrer pelo palco, enquanto os outros miúdos se deliciavam naquilo que bem podia ser uma cabidela de Marlene. Não queria ser degolada pelo carro com luzes que piscam atirado ao ar por um puto raivoso. Não queria ser esquartejada pelo Urso Bob enquanto os seus pais se riam sadicamente de tudo o que se estava a passar. Não! Não podia ser verdade. Os seus próprios pais não lhe podiam estar a pedir para ir brincar para o palco! Não!

Os pais apercebendo-se do pânico de Marlene, voltaram a sentar-se, conversaram um pouco com ela e disseram que estava tudo bem, se ela não queria ir, também não era obrigada. Marlene sentiu-se um pouco mais confortada, afinal os seus pais já não a queriam comer cozida no seu próprio sangue, afinal eles ainda gostavam dela. Mas aparte disso ela ainda queria ir brincar com a boneca, mas nunca com aquele bando de canibais ali e sabia que eles tão cedo não sairiam de lá . “Haviam de morrer todos”, pensou, “Haviam de morrer todos queimados. Devia haver um incêndio e eles morrerem todos carbonizados.”

Um pequeno sorriso brotou na face de Marlene. Imaginando a boneca a cuspir confettis de fogo, fez um sinal aos pais de que queria ir embora e levantou-se calmamente vendo os confettis a arder, caindo lentamente sobre os miúdos que corriam e gritavam em pânico com as costas em fogo. Sim, continuavam a correr e a gritar, mas desta vez não era de contentamento, mas sim de dor e desespero, caminhando para uma lenta e agoniante morte.

Calmante Marlene abandonou a sala levando um sorriso estampado na cara, que muito intrigou os seus pais. No palco a cabeça do Urso Bob, despregada do seu corpo em chamas, caía sobres os pequenos corpos em chamas que jaziam agora num silêncio dourado.