outubro 10, 2007

Olhos Azuis

I


António Joaquim tinha acabado de chegar a casa. Entrou calmamente pela cozinha adentro, o seu cão Nero veio ter aos seus pés abanando a cauda com contentamento enquanto Maria Josefina, sua mulher, estava na banca a trabalhar, manuseando cuidadosamente um grande prato de barro. Ele aproximou-se sorrateiramente dela e passou-lhe a mão pelo corpo, mas ela assustou-se, deixando descair o prato de barro. Os dois ficaram frente a frente impávidos com aquela estúpida situação. António Joaquim tentou fazer uma leve festa no rosto de Josefina, como que a pedir desculpas, mas esta afastou bruscamente qualquer tipo de aproximação de António, não queria qualquer tipo de piedade naquele momento. O seu melhor prato de cozinha estava estragado e a situação não estava favorável para comprar louça nova, ainda por cima de barro.
Maria Josefina pegou lentamente no prato, examinando-o ao pormenor. Sim, estava rachado. Lentamente dirigiu-se para a porta e, sem olhar para trás, saiu deixando António Joaquim abandonado.


II


Os anos passaram. O casal tinha agora uma filha de 8 anos. Maria Josefina estava na cozinha a limpar o seu lindo prato de barro com um enorme pano azul. Levantava-o, revirava-o e tornava a puxar-lhe o lustre. Era um ritual quase diário.
António Joaquim estava sentado junto à lareira e olhava fixamente para a sua filha, Kátia Banessa, que se encontrava no sofá a ler um livro de quadradinhos com o Nero a descansar aos seus pés. Tinha abandonado o emprego à quatro anos atrás e raramente ausentava-se de casa. Havia algo naquela menina que o hipnotizava. Eram aqueles grandes e brilhantes olhos azuis. Uns olhos azuis tão claros como o céu aberto e tão profundos como o mar calmo. Joaquim quase não se mexia, limitava-se a olhar fixamente para a menina. Kátia Banessa levantou os olhos e sorriu para o pai. Um sorriso puro e inocente como só uma criança o pode fazer.


III


Maria Josefina tinha acabado de pôr a comida na mesa, Kátia Banessa comia calmamente a sua sopa e António Joaquim, sentado no canto da mesa, apreciava lentamente este cenário. Olhou distraidamente para Josefina, lá estava ela novamente a endireitar o prato de barro, já quase não falava com ele, aliás, desde que aquele prato se tinha rachado uns anos atrás que ela nunca mais foi a mesma para com ele. Suspirou e volveu o olhar para a menina, paralisando de repente como se tivesse sido hipnotizado, ficando a colher da sopa a meio caminho entre o prato e a boca, gotejando lentamente.
Kátia Banessa continuava a sorver lentamente a sua sopa, mas aqueles olhos azuis… aquele azul contrastava com o castanho da sopa, de tal maneira que parecia um acto de magia. Uns olhos azuis tão claros como o céu aberto e tão profundos como o mar calmo.


IV


António Joaquim estava de frente para o espelho e examinava atentamente as suas feições. Passava a mão pela cara e pelo cabelo, aproximando-se de vez em quando do espelho como se quisesse ver para além dos olhos.
Procurava algo, alguma explicação. Havia algo de errado, algo de estranho, algo de mágico, algo de inexplicável. Desde que aquele prato se tinha rachado aquela casa nunca mais fora a mesma, Josefina nunca mais foi a mesma. E aquela menina? Aquele pequeno anjo que raramente abria a boca, mas que enchia qualquer lugar com a sua simples presença. António Joaquim nunca mais foi o mesmo desde que aquela menina nasceu.


V


Kátia Banessa brincava cá fora com o Nero, simulava que lhe atirava a bola, enervando o cachorro que saltava, ladrava e resmungava com toda aquela brincadeira, mas quando ela soltou finalmente a bola, o cão saiu disparado como uma bala, galgando pelo jardim fora.
Maria Josefina encontrava-se à janela da cozinha a limpar o famoso prato de barro. Virava-o e revirava-o, suspirando de quando a quando.
António Joaquim estava sentado na mesa do jardim, olhava fixamente para Kátia Banessa, o cigarro queimava-se na sua mão imóvel, a cinza ia caindo em pequenas parcelas sobre a mesa. Aqueles olhos azuis, tão claros como o céu aberto e tão profundos como o mar calmo, hipnotizavam-no. Hipnotizavam-no desde o primeiro dia em que os viu. Tinham passado uns meses largos desde que o prato se tinha rachado quando Kátia Banessa nasceu, a sua relação com Josefina era estranha mas estável e estavam ambos ansiosos com o facto de irem ser pais, mas quando a bebé começou a abrir os olhos e mostrou todo aquele azul reluzente, o casal ficou surpreendido. António Joaquim ainda pensou ao início que se tinha dado um milagre e que deus lhe tinha enviado um anjo para a sua guarda. Maria Josefina ficou assustada e desde esse dia tornou-se uma mulher cabisbaixa, mal dirigia a palavra a António Joaquim e passava o tempo todo agarrada àquele prato, suspirando.
Com o passar do tempo a ideia do milagre tornava-se cada vez mais idiota na cabeça de António Joaquim e a imagem de anjo da menina tornava-se cada vez mais numa imagem de demónio. Quatro anos depois abandonou o seu emprego.


VI


O prato de barro encontrava-se no chão dividido em duas partes no meio das batatas fritas que se tinham espalhado pelo chão. Kátia Banessa olhava tristemente para o pai, com o prato aos seus pés. António Joaquim olhava para o chão, incrédulo. O prato preferido de Josefina estava partido! Maria Josefina apareceu de repente, sem ninguém dar conta e, quando se deparou com o prato partido, as lágrimas quase lhe saltaram aos olhos, olhou para a sua filha e passou-lhe a mão pela cabeça. Kátia Banessa olhava para ela quase a soluçar, aqueles olhos azuis tornaram-se num símbolo de piedade. Josefina baixou-se rapidamente e apanhou as duas partes do prato, levantou-se tentando juntar as partes e dirigiu-se para a porta sem tirar os olhos do prato. António Joaquim puxou Kátia para a sua beira e esta agarrou-se fortemente a uma das suas pernas. Era a primeira vez que Joaquim a abraçava e soube-lhe bem.


VII


António Joaquim estava novamente sentado no jardim a fumar um cigarro quando a campainha tocou. Quem seria àquela hora, pensava enquanto se dirigia à porta, já não se lembrava da última vez que tinha ouvido a campainha a tocar. Abriu a porta e do outro lado estava um rapaz que lhe estendia um prato de barro. Era o restaurador que trazia o prato arranjado. António Joaquim olhou atentamente para o prato, era um trabalho de restauro perfeito, não se via nenhuma racha, nenhuma folga, nenhum indício que aquele prato se tinha partido. Olhava admirado para tal obra de arte, Maria Josefina iria ficar contente com aquele trabalho, pode ser que a voltasse a ver sorrir.
Joaquim voltou-se para agradecer ao restaurador, quando, de repente, o seu rosto fica visivelmente transtornado. O grande prato de barro estilhaçou-se ruidosamente no chão em mil e um pedaços, o corpo de António Joaquim tremia compulsivamente, a cabeça transpirava pequenas cascatas de água, os olhos transportavam o horror, o seu rosto ganhou contornos cadavéricos. Os olhos…. Aqueles olhos… Os olhos do restaurador eram azuis. Uns olhos azuis tão claros como o céu aberto e tão profundos como o mar calmo.