setembro 30, 2004

Dedicatória a Camões

Grande Camões, como poderias tu, naquela altura, saber tanto de mim???

O dia em que nasci morra e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao Mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.
A luz lhe falte, o Sol se [lhe] escureça,
Mostre o Mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.
As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida.
Cuidem que o mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao Mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!

.....................................................

Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
Anda o Mundo concertado.


Sim, é verdade. Antes de eu descobrir os "Doors" e o Jim Morrisson se tornar o meu deus, o meu Guru, a minha luz, eu tinha descoberto Luís Vaz de Camões.
Comecei por descobrir os pequenos textos, ditos Sonetos, que toda a gente conhece, "Amor é fogo que arde sem se ver", "Alma minha gentil, que te partiste" e Redondilhas, "Perdigão perdeu a pena/Não há mal que não lhe venha" e quanto mais o descobria mais me apaixonava por ele, mais me encontrava nos escritos dele.
Quando já me tinha rendido à sua magnitude, resolvi pegar nos Lusíadas (dá-se nas escolas, não sei se sabem). É claro que não o li todo, isso seria suicídio para um jovem, mas li as passagens mais importantes e rematei o conhecimento com a ajuda de livros, professores e uma cassete áudio, que me chegou ás mãos pela minha professora de Português Dália Dias, que continha excertos dos Lusíadas narrados com um toque teatral pela voz de João Cardoso, que proporcionava uma deliciosa viagem sobre esta grande epopeia (receio ter perdido o rastro a esta cassete).
Se eu já me tinha rendido à "magia" de Camões, quando tomei, finalmente, contacto com o "interior" dos Lusíadas fiquei completamente de rastos. Automaticamente Camões saltou para o meu pedestal dos deuses.
E quem é que pode esquecer aquela fabulosa cena do espectáculo "Vai no Batalha" do Teatro de Marionetas do Porto em que a marioneta/poeta entra magistralmente em palco pelas mãos do grande Rui Oliveira e diz:

"E agora um breve momento de poesia. (And now for something completely different, diria eu)
De Luís Vaz de Camões... Os Lusíadas.

As Armas e os barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca dantes navegados....
"

Ahhh... Pudera o tempo parar para gozar em pleno estas pequenas relíquias que a história e o pó da memória vão cobrindo e apagando...

setembro 26, 2004

A Corda no Pescoço

Finalmente chegamos ao fim. O texto que deu origem a este blog.
O Teatro é um mundo complicado. Vive-se em constante pressão, sempre em contagem decrescente e o tempo que há nunca é suficiente. "Mais uma semana e isto ficava bem!" é sempre o cliché de uma estreia. É exactamente durante esse periodo que nasce este texto, a menos de uma semana de uma estreia, enquanto se acabam as ultimas alterações no vídeo de cena e o computador nos manda esperar quando nós temos tempo para tudo menos para esperar. A corda começa a apertar e não podem ocorrer erros. Este sofrimento é muito solitário e é dificil encontrar ou falar com alguém que compreenda esse desespero. Acho que este texto é suficientemente elucidativo nesse aspecto.


A Corda no Pescoço

Estou neste momento com a corda no pescoço. Sinto o chão a vibrar por baixo dos meus pés, a ranger, vai e vem...
Sinto um enorme aperto no coração, um aperto indescritível à espera do momento em que o chão me vai fugir dos pés e acabar com tudo.
Pum, Pum, Pum, Pum....
Às vezes peço para que o chão se abra e acabe com todo este desespero. A corda cada vez está mais apertada, já mal respiro. O coração bate cada vez mais depressa.
A espera... A expectativa... O stress... Os nervos... O coração.... O desespero...
Queria adormecer e só acordar quando tudo estivesse acabado, mas não consigo... Os dias passam uns a seguir aos outros e quando acordo reparo que já passou mais um dia e que a corda cada vez mais está apertada.
Às vezes peço para que o chão se abra e acabe com tudo isto.
Olho à minha volta e não vejo ninguém. Ninguém veio assistir ao meu enforcamento. A solidão...
Às vezes sonho com pessoas. Pessoas à minha volta a sorrirem e a abraçarem-me, mas nenhuma me tira a corda do pescoço. Talvez não a vejam, talvez não se importem, talvez não consigam, talvez eu não as deixe... Não sei! Acordo sempre a meio do sonho.
Já não me lembro como era o mundo lá fora. Já não me lembro de nada a não ser dos meus sonhos, mas tenho saudades... Queria voltar ao normal. Será possível? Haverá retorno??? Quanto tempo irá demorar isto???
Às vezes também sonho com o mar... O sol ao fundo alaranjado a desaparecer... O barulho da água... O ar fresco...
Não gosto de sonhar com o mar! Acordo sempre com a cara molhada e eu não gosto de chorar.
Continuo aqui pendurado. A corda já me rasga o pescoço. O chão continua a tremer e a ranger.... Continuo sozinho... Será que um dia isto vai acabar? Decerto que sim, ou o chão finalmente se abre ou o coração pára. Não sei quanto tempo mais ele vai aguentar este ritmo.....
Já perdi as esperanças que alguém apareça para me salvar... Aliás já perdi qualquer esperança... E esta espera mata-me. A espera... A expectativa... O stress... Os nervos... O coração.... O desespero... A solidão... Quanto tempo irá demorar isto???
Não me lembro de quem me pendurou aqui. Nem me lembro como aqui vim parar. Terei vindo sozinho? À força? De livre vontade? Não me recordo....
Tenho saudades de um cigarro a acompanhar uma cerveja. Tenho saudades de fazer festas ao meu cão. Às vezes lembro-me dele e sonho com ele de vez quando.

Tenho saudades dela... Sim, é verdade! Ainda me recordo dela... Tenho saudades dela...

Pergunto-me frequentemente se tudo não terá sido um sonho. Se não estive aqui sempre o tempo todo pendurado a sonhar. E se esta for realmente a realidade? E se tudo não passou de sonhos? O mar... O sol... Os cigarros com cerveja... O cão... e Ela??? Terá sido ela, também, um sonho?

Às vezes peço para que o chão se abra.... Devagar....
9 de Junho de 2003

Regresso

Isto é mais uma reflexão do que ficou para trás, do que um prefácio, mas foi pensado para o prefácio de mais uma história que tinha em mente. Nunca cheguei a escrever essa história e nunca cheguei a ter uma ideia concreta para a avançar, mas a ideia base ainda deambula na minha mente e sei que mais tarde ou mais cedo vou voltar a ela. É inevitável...


31 de Maio de 2001


São 2:16 da manhã. As ideias “flutuam” constantemente na minha cabeça. Tenho saudades de escrever e sinto-me mais uma vez tentado a escrever. Necessito de pôr as minhas ideias em prática e necessito mais do que nunca de descarregar a minha raiva, libertar todo o meu ódio e repulsa que tenho recalcado ao longo destes 2 anos sem escrever.....
Após Nowhere City e Morte e Salvação, sinto que vou continuar na mesma onda e que provavelmente vou voltar a Nowhere City pela terceira vez. Sim pela terceira vez porque cada vez mais acredito que a Morte e Salvação é passado em Nowhere City. Aliás tem todos os ingredientes para isso e o espaço físico é o ideal para a compreensão da história. Então não é em Nowhere City que a morte vive?? E não é ela própria que aparece In loco na Morte e Salvação?? Que dúvidas podem restar? Toda a raiva e morbidez da Morte e Salvação compactuam perfeitamente com Nowhere City.
Sendo assim acho que vou voltar a Nowhere. Mas desta vez será diferente, não vou ser como John em Nowhere City ou William em Morte e Salvação. Desta vez vou tentar conjugar a raiva que há em Nowhere City com a morbidez e o massacre sanguinário de Morte e Salvação e tentar juntá-las numa única pessoa, uma pessoa má, vingativa, sanguinária, tendo algumas parecenças com as personagens anteriores. Será uma pessoa romântica e ao mesmo tempo “desligada da vida” como John e sofredora a quem a vida nunca sorriu. É talvez esta ligação que faz com que esta nova personagem tenha um comportamento tão desumano e egoísta..... Não sei..... Esta será uma questão que eu provavelmente só irei solucionar quando começar a escrever e a criar esta nova personagem....

A Morte..... Mais uma vez a morte..... Sim, sem dúvida.... Ela tem de aparecer..... Como?? Não sei... Ainda tenho de arranjar uma maneira de a integrar. Mas acho que ela vai ser um pouco diferente da Morte de a Morte e Salvação. Desta vez ela, embora mantenha a mesma onda negra e fria, será talvez a femme fatal que dará origem a tudo. Uma mulher sensual... Sim.... Acho que será interessante ver a morte como uma mulher fatal, uma “boazona” e, como todas as “boazonas”, uma grandessíssima cabra.......

São ideias no ar que serão a rampa de lançamento para mais um texto......
2001

setembro 22, 2004

Tabacos

Uma nova tentativa de voltar a escrever um conto. Devido ao "falhanço" das "Crónicas" resolvi deixar o humor sarcástico de lado e voltar à velha formula de morbidez. A minha intenção era recriar alguns contos sórdidos que rondassem o tema do Tabaco, mas a ideia era fraca, faltavam-me temas e motivos, no fundo acho que me faltou a raiva e a fúria de outros textos anteriores, ou seja, a vontade de matar a torto e direito, por isso acabou por ficar só um capítulo completo e algumas ideias soltas....


Tabacos

É certo que o tabaco mata! Também é certo que mais tarde ou mais cedo vamos desta para melhor..... Mas quando se diz que o tabaco mata, pensa-se só nas doenças, nos cancros e noutras causas naturais. Ora, existem muitas outras causas que não são naturais, causas externas ou sobrenaturais, e são essas que eu vou tentar provar aqui. Vou tentar mostrar-vos várias maneiras de morrer por causa do tabaco sem ser por causas naturais....

I

Stephen era uma pessoa calma, sem grandes problemas a atormentá-lo. Tinha apenas um problema... fumava! Gostava de estar em casa, não saía muito. Passava as tardes a ver televisão ou a ler um livro enquanto fumava os seus cigarros.
Um certo dia estava Stephen em sua casa a ler um livro e reparou que não tinha tabaco. Não lhe apetecia sair de casa de propósito só para comprar tabaco, por isso conteve-se e continuou a ler. Passado umas horas Stephen já não conseguia aguentar mais, sentia a garganta seca, o seu corpo tremia sempre que pensava num cigarro e já via as coisas meias desfocadas. Estava mesmo a precisar de fumar um cigarro... Desesperado vai a carteira, confere se o dinheiro chega para o tabaco, veste o casaco e sai a correr de casa. Pára no cruzamento mais próximo, o semáforo está verde para os peões e Stephen atravessa a correr. Nesse preciso momento um carro da polícia, que vinha disparado e tinha passado no vermelho, vira para a esquerda e ouve um estrondo. Pequenas gotinhas de sangue salpicaram o pára-brisas, o carro travou a fundo. Dois polícias saíram a correr do carro, Stephen estava estendido no chão a poucos metros do carro, à sua volta estava uma grande poça de sangue, os seus olhos estavam abertos, mas o seu corpo estava inerte. Stephen morreu poucos minutos depois.....
2001

setembro 20, 2004

Crónicas do Porto

Este texto foi uma tentativa de voltar a escrever um conto. Tentar voltar a reencontrar os meus velhos devaneios e fazer uma história que não fosse mórbida nem rondasse o assunto da morte...
Após algumas ideias expostas, acabei por abandonar a ideia, devido ao "lugar-comum" em que a história se estava a formar. No fundo acho que me apercebi que tinha perdido o dom de criar devaneios que não fossem mórbidos.
De qualquer maneira fica aqui o princípio da história e o Prólogo...

Crónicas do Porto

Prefácio
A verdade é que, após dois anos de interrupção, já tinha saudades de me sentar atrás de um computador e escrever. Foram três anos consecutivos a escrever e de repente, de um momento para o outro, deixei de escrever. Digamos que depois da minha última ficção “Morte e Salvação” tive um certo receio de voltar a escrever. Talvez por ter atingido níveis “filosófico-suicídas” que nunca poderia imaginar atingir. Talvez por achar que dificilmente conseguiria escrever algo tão intenso e real outra vez. Talvez a minha mente, ao ir tão longe, me tenha assustado. Talvez....
Mas, passados dois anos, resolvi sentar-me outra vez em frente ao computador, mas desta vez não me apetece voltar às questões filosóficas, nem à incessante procura pela Morte (tema corrente nos meus últimos textos...). Desta vez resolvi reactivar o meu já saudoso lado negro e voltar ao meu humor destrutivo e critico.
No quotidiano do dia a dia acontecem sempre coisas bizarras e interessantes, algumas delas dignas de serem retractadas ou filmadas.
Foi exactamente esse quotidiano que me motivou a escrever estas crónicas. Tive de voltar aos meus tempos de escola para me lembrar de muitas situações. Tive de ir buscar ao meu “baú mental” recordações já esquecidas pelo pó e pelo tempo. Nunca tinha arriscado escrever crónicas, mas devo admitir que é um teste muito interessante. Nem que seja só pelo facto de voltar a passar por certas cenas já esquecidas....
Julho de 2001
Hugo Valter Moutinho
Capítulo I
Manhã
8:00
Era um dia como todos os outros. Os carros “correm” de um lado para o outro, atarefados para chegarem ao emprego a horas. Ouvem-se algumas buzinas de alguns apressados que tentam sempre passar por cima de todos porque vão sempre atrasados.
Nada de novo.
Ao fundo ouvem-se os gritos provenientes do bairro social:
— Oh José!!!! Joséééééééé!!! Anda cá, caralho!!! Anda cá!!!!!
— Já bou!!!! Calma mulher!! Não bês que eu estava a falar com a Sr.ª Maria?? Tem calma!!!
— Por isso mesmo! Já te disse que não te quero ver com essa vaca!!! Anda mas é para dentro antes que eu te foda a boca.
— Foda-se, mulher! É sempre a mesma merda! Não pode estar um homem a conbersar descansado que...
Fechei a janela. Não me apetecia estar ali a ouvir a conversa dos outros, até porque já sei o que ia acontecer a seguir: Vem a Sr.ª Maria a correr tirar satisfações: «Mas estás a chamar vaca a quem??? Minha grande puta!!! Pensas que toda a gente é como tu??? Que se deita com o primeiro que lhe aparece à frente??? E que já dormiu com todos os homens do bairro??? Eu até tenho pena do teu marido, que já tem que se abaixar para entrar em casa!! Qualquer dia já nem consegue entrar!!!» E depois continua a festa, a outra responde e passam a manhã toda a discutir uma com a outra, enquanto que o homem, aproveitando a deixa, foge para a cama da vizinha do 5º esquerdo.
Nada de novo.
Depois do banho fui tomar o pequeno almoço acompanhado pela minha fiel companheira que, excitada, bate furiosamente o rabo à espera de algum pedaço de comida que possa cair, chorando desalmadamente se, por acaso, não lhe dou um bocadinho de pão.
Nada de novo.
Preparei-me para ir ao banco levantar dinheiro, pois não me apetecia ir de carro e não tinha dinheiro para as senhas do autocarro.
Ao sair de casa reparei que as duas mulheres ainda continuavam a discutir, desta vez já com uma numerosa plateia a assistir e a intervir:
— É verdade! É verdade que eu bem vi!! — gritava energicamente um velhota rouca.
— Eu juro, pela saúde da minha querida mãezinha que está no hospital, que o que eu disse é verdade!!! Eu vi com este olhinhos que a terra há de comer!! — dizia uma rapariga que ainda estava de pijama e chinelos.

Capítulo II
Banco
Cheguei ao banco e, para variar, deparei-me com uma fila enorme. A maior parte era só idosos. Dirigi-me para o final da fila mais curta. Olhei atentamente para a frente. Devia ser mais ou menos um quarto de hora de espera. Tinha tempo...
Passado cinco minutos ainda não tinha saído do sítio! À minha frente encontrava-se um senhor de idade que mal se conseguia aguentar em pé. Apesar da sua frágil bengala o velho inclinava-se todo para trás tentando equilibrar-se, ficando eu a aguentar com todo aquele peso. Mesmo com alguns empurrões fortes o velho não saia de cima de mim.
Para melhorar a situação, mesmo por trás de mim estava outro senhor de idade que devia estar com uma pneumonia pois não parava de espirrar para cima de mim. Ao princípio nem me importei, mas depois comecei a ficar com o pescoço todo molhado........ Eu ainda perguntei ao homem se não tinha um lenço, mas o homem, que era surdo como uma porta, disse-me que só ia ao banco duas vezes por mês.
Ao meu lado esquerdo estava uma simpática senhora com os seus 150 anos. Ela mal conseguia andar e muito menos segurar na caderneta bancária. Já tinha deixado cair a caderneta umas três vezes e eu, muito simpaticamente, baixei-me as três vezes para apanhar a caderneta da senhora. Esta muito agradecida sorriu-me três vezes, mostrando a sua “linda” boca desdentada.
No balcão estava também uma velhinha a pedir informações sobre o Multibanco. A rapariga da caixa esforçava-se ao máximo para explicar, mas a velhinha continuava sem perceber nada.
— Mas... Eu meto o cartão lá dentro da máquina????
— Sim. Depois só tem que marcar o seu código pessoal e seleccionar a opção que quer.
— Mas se a máquina come o cartão como é que eu selecciono o que quero??
A rapariga desesperada voltava a repetir tudo.
Passado vinte minutos eu já tinha dado 12 pequenos passos. A velha continuava no balcão a pedir informações. Os passos que dei foram porque algumas pessoas desistiram de esperar e foram-se embora.
— Mas como é que a máquina sabe quanto dinheiro tenho de levantar?? — perguntava a velhinha, que cada vez percebia menos. A rapariga da caixa já estava completamente despenteada de tantas vezes passar a mão no cabelo. A sua voz já estava rouca e os seus olhos ficavam vermelhos de raiva sempre que olhava para a velha. Os olhos dela e os nossos. Apetecia-me ter ido lá e estrangular a velha ali mesmo em cima do balcão e depois voltar-me para trás para receber os aplausos efusivos de quem estava ali, como eu, à espera.
O velho da frente continuava apoiado em cima de mim. O de trás continuava a tossir, com mais frequência e mais energicamente. Já tinha o pescoço e parte das costas completamente ensopados. A simpática velhinha que continuava ao meu lado já tinha deixado cair mais umas 12 vezes a sua caderneta e eu já me tinha baixado 11 vezes para a apanhar. Sim, só 11 vezes porque uma das vezes foi o velho que se encontrava à minha frente que “tentou” apanhar a caderneta à simpática senhora. Eu digo “tentou” por quando se ia a baixar desequilibrou-se caindo para a frente e empurrando as pessoas que se encontravam à sua frente que por sua vez quase esmagavam as pessoas que estavam ao balcão. Caos total!! Finalmente acabou por ser um jovem que apanhou a caderneta do chão e ajudou-me a levantar o velho. Tanto eu como o jovem estava-mos completamente perdidos de riso, algumas pessoas tentavam conter o riso, outras deitavam olhares assassinos para o velho.
Após 23 passos pequenos, 5 passos médios, 2 passos grandes, 45 encostos do velho da frente (e 37 empurrões que eu lhe dei), 126 espirros do velho de trás, 15 cadernetas apanhadas do chão e 15 sorrisos desdentados, consegui, finalmente, chegar ao balcão. Tudo o que queria era um simples levantamento. Mas depois de tudo o que eu passei, aproveitei e pedi o cartão Multibanco, o cartão Visa, o cartão Mastercard, o acesso à conta via internet e tudo o mais que fosse preciso para eu poder movimentar a conta sem ter que voltar ao banco.
No final acabei por convidar a rapariga a almoçar comigo, já passava da 1h, eu estava cheio de fome e ela estava visivelmente a precisar de descansar um bocado. Ela aceitou prontamente.
No final ela agradeceu o convite para almoçar, trocamos números de telefone e cada um foi para seu lado. Ela outra vez para o banco e eu fui apanhar o autocarro.
2001

Feliz Aniversário...

Talvez influenciado pela carta anterior, resolvi novamente voltar a escrever uma carta de aniversário. Desta vez para uma pessoa diferente.
Uma carta muito menos alegre que a anterior com ideias muito fragmentadas, algum sofrimento na alma e uma saturação da rotina fatigada. É quase uma carta de despedida, na qual tento dizer algo que a minha boca não o conseguiria dizer.
A pessoa para a qual escrevi esta carta nunca a chegou a lêr.




Pois é....
Mais um ano....
Mais um ano que passou,
Mais um aniversário para celebrar.

É aqui que começam os problemas...
Que prenda dar a uma pessoa que não nos deu prenda de natal....
A uma pessoa que não nos deu prenda de anos....
E pior ainda, que não se lembrou dos nossos anos....

Pois é.... Que prenda dar a esta pessoa???
E será que ela merece uma prenda???
É claro que uma pessoa perdoa....
Aliás, perdoa TUDO...
Principalmente quando se gosta,
Uma pessoa perdoa até de mais!

Depois, é claro, toda a gente merece prendas...
TODA a gente!!!

Vistas as coisas por este lado seria injusto da minha parte não oferecer uma prenda....
Por mínimo que seja....
Aliás é uma coisa que já te tinha prometido há muito tempo,
Por isso, não será mais do que a minha obrigação....

Espero que gostes da minha prenda,
Espero que sempre que a ouças te lembres de mim,
É apenas uma lembrança,
Como tudo na vida....
Tudo são apenas lembranças...................

Algumas boas,
Outras más,
Como tudo na vida,
Altos e baixos.

É sempre bom termos algo de alguém
Que podemos sempre recordar.
Dar algo que nos identifique,
Que deixe sempre marcada a nossa presença.

No final,
Contas feitas,
O meu trabalho acabou.
Já nada tenho a fazer de relevante.
Já tens um emprego,
Já tens uma casa,
Já tens a tua privacidade,
Já tens a tua autonomia.

No meio disto tudo deixo de ter valor...
A minha luta acabou.
Quando tudo está bem,
Quando já não há ajuda precisa,
Quando já não há nada de útil a fazer,
Deixo de ter razões para continuar a trabalhar.

E, tal como tinha prometido,
Até as coisa estarem bem,
Eu não arredava o pé.
Mas quando as coisas estivessem bem,
Quando tudo estabilizasse,
Eu, quando muito bem entendesse,
Abandonaria o barco.

Ora, visto que o meu trabalho acabou,
Visto já não ter razões para lutar,
Visto estar tudo bem,
É chegada a minha hora!

É claro que custa
E é claro que nunca será um verdadeiro abandono,
Pois estarei sempre à deriva,
À espera de um ou outro naufrago que possa cair do barco
E necessite da minha ajuda...


Às vezes necessitamos de recuperar forças,
De pensar se realmente é aquilo que queremos,
Se estamos a agir bem ou mal,
E que consequências podem trazer essas acções para nós....

2000

Uma prenda de anos

Depois da morbidez toda, da procura pela Morte e, finalmente, o seu encontro, deixei de escrever com tanta regularidade.
Primeiro porque o nível a que eu cheguei em "Morte e Salvação" assustou-me um pouco, acho que fiquei um pouco obsecado pela aquela ideia e isso fez-me recear voltar a escrever com medo de voltar a entrar naquele mundo, principalmente sabendo que difícilmente chegaria a aquele nível novamente.
Segundo, começou o trabalho e, claro, deixei de ter tanto tempo para dedicar à escrita.
Este texto aparece quase um ano depois de ter deixado de escrever, numa altura em que já sentia saudades de escrever. Mistura um pouco dos meus devaneios com as minhas reflexões, o meu péssimismo negativista e o meu sentido de humor sarcástico...


Uma Prenda de Anos para um Pai

Quando se está mal financeiramente torna-se difícil comprar ou até pensar em prendas...
Mas o problema principal não reside aí. O grande problema está na escolha da prenda. O que se deve oferecer a uma pessoa nos anos?? É, e sempre será, um dos grandes problemas do Homem.
Quando se trata de uma prenda para uma mulher temos mais de metade dos nossos problemas resolvidos, pois a mínima coisa tem um significado enorme para elas. Podemos oferecer flores, bombons, perfumes, postais, uns bonecos, por mais pirosos que sejam e de preferência que incluam palavras de ordem como “I love You” “I can´t live without You” ou outras merdas do género, qualquer coisa... Qualquer penduricalho serve para elas fazerem uma enorme festa e cobrirem-nos de beijos e abraços.
O problema começa quando se trata de oferecer uma prenda a um homem. A um homem não vamos oferecer flores, nem chocolates, senão corremos o risco de passar por paneleiros, ou bichonas. Bonecos? Só se for daqueles bonecos borrachões com o “chico” de fora e com palavras de ordem como “Biba o Porto”, “Nós só queremos Lisboa a arder”, etc. Porque se for daqueles bonecos muito bonitos, cheios de flores e corações a dizer “I love You” e outras coisas, arriscamo-nos a receber em troca quatro socos, dois pontapés e três cabeçadas....
Perfumes ou postais? Talvez, mas não acho que seja a prenda mais indicada para um homem oferecer a outro homem.
Canetas??? Não! Acho que não! Já está muito batido e, além do mais, é uma prenda pirosa e de muito mau gosto...
Mas os problemas não acabam aqui. Muito pelo contrário só estão a começar.... Como se não bastasse ser difícil a escolha de uma prenda para um homem, a coisa torna-se ainda mais dramática se esse homem for nosso pai.......... Sim, porque pai é sempre pai e por muito que não se goste da ideia, por muitos problemas que hajam, somos obrigados a aturá-los para o resta da vida.
Quer dizer, já não basta termos de atura-los toda a vida, ter de viver com eles e ainda somos obrigados a dar-lhes prendas??????
Pois... Voltando à questão inicial, que prenda é que um filho pode dar a um pai? Ao contrário do que se pensa não é nada fácil.......
Um Livro??? Talvez.... Mas que livro se pode oferecer a um pai que tem uma gigantesca biblioteca com milhares de livros???
Uma bengala??? Genial! Assim os pais já tinham qualquer coisa em que se apoiar sem ser nos desgraçados dos filhos. Por outro lado podiam pensar que lhes estão a chamar velhos e correr-nos à bengalada....
Uma pistola???? Boa Ideia! Espectacular! Assim ele poderia dar um tiro na cabeça e deixar-nos em paz para o resta da vida. Eh! Eh! Eh..... Não! Não pode ser, isso seria uma prenda que nós daríamos a nós mesmos. Não somos nós que fazemos anos são eles, por isso será melhor guardar essa ideia para o nosso aniversário......
Porra!!! Realmente não é nada fácil pensar numa prenda para o nosso pai...
Espera.... Porque é que em vez de estarmos a foder o cérebro a pensar em prendas, não aproveitamos a ocasião para demonstrar-lhe o que realmente pensamos deles. Sim, em vez de estar-mos a gastar dinheiro em merdas que se calhar eles nem vão ligar nenhuma, não provamos através de outros meios que gostamos deles?
Há várias maneiras de fazer isso. Eu acho que o melhor que se devia fazer era deixar um recado a dizer: “Parabéns Pai! Gosto muito de ti! Não devo vir dormir a casa nos próximos dias. Um beijo!” e depois só aparecer em casa passados seis meses. Que melhor prenda pode ter um pai senão ver-se livre dos filhos durante seis meses??? Mas talvez isso ainda fosse agravar mais os conflitos de gerações já existentes....
A melhor maneira será talvez a mais dolorosa para nós. Dizer-lhes que apesar de tudo, apesar de serem uns chatos, de nos quererem controlar com algemas e correntes, de serem somíticos, retrógrados, ou o que quer que sejam, são acima de tudo nossos pais.... Que são os verdadeiros culpados da nossa maldita existência terrestre, que sem eles nunca tínhamos existido, nem estaríamos aqui neste momento..... Pensando melhor será que devíamos agradecer aos nossos pais e mães o facto de nos terem posto neste mundo???? Será que eles gostam tanto de nós a ponto de nos fazer nascer nesta selva egoísta e estúpida que é o mundo?? Bem, não estamos aqui para discutir isso. Mais tarde falaremos nesse assunto...
O que interessa dizer é que eles são nossos pais e que, com eles ou sem eles, ou seja, vivos ou mortos, estarão sempre connosco na nossa memória e, quiçá, talvez, lá no fundo do fundo, no nosso coração. Que apesar de tudo, nós gostamos deles, sejam eles como forem. Porque por mais frio e insensível que sejamos, por mais raiva que uma pessoa tenha, um pai é sempre um pai e nós gostamos sempre deles. Uns mais outros menos, mas gostamos sempre deles.
Um filho nunca deve demonstrar que gosta do pai ou da mãe, senão eles habituam-se mal, mas é nessas alturas (aniversários) que se deve mostrar o que realmente se sente pela pessoas....... (O que vale é que só é uma vez por ano! E mesmo assim não é nada fácil...)


P.S. - O grande problema dos pais e, principalmente, das mães é não quererem admitir que estão a ficar velhos, caquécticos e que os filhos já cresceram, que já não têm 12 anos..................
1999

setembro 18, 2004

I Don’t Belong Here

Hmmm... Realmente o ano de 1998 foi um ano complicado...


I Don’t Belong Here

Maybe dead, maybe awaked,
But I don’t know where I am.
I don’t feel anything,
I don’t taste anything.
All I want is to die!!!!!!!!
I want to feel the taste of Death,
I want to feel the love of Death.
I’m tired of this shit.
I’m tired of this world.
The only thing I want is to die!!!!!
I don’t belong here....


1998

The Meaning of World

Raiva, sofrimento, angústia, loucura... Não sei bem o que me levou a escrever isto, mas nota-se que foi uma descarga e uma coisa é verdade: The world has no meaning.



The Meaning of World


I’m tired of this shit
I don’t know the meaning of life,
But I don’t care,
Because I don’t like this life.

I wanna go to the other side
I wanna see the other side.
This world sucks,
And I don’t want to live anymore.

I don’t believe that life is good.
I don’t believe on everything I’ve heard.
The world is dying,
And I don’t like this life.

This life is made of pain.
This world is made of anger,
But I don’t care,
Because I don’t like this life.

I don’t care. The world has no meaning....

1998

setembro 14, 2004

Morte

A continuação (e obsessão) da procura de uma explicação para a Morte.
Gosto da inocência deste texto. Do naif e descontracção com que foi feito, sem raiva, sem fúria, sem vinganças. É quase um desabafo, ou uma procura, sobre o que se estava a passar em "Morte e Salvação".
Tenho pena de já não pensar assim. Gostaria de puder voltar a sonhar assim, inocentemente...


A Morte
Existe um grande enigma por trás da morte.
O que é? Quem é? Não sei! Mas sinto-me deveras interessado em descobrir.
Será que existe mesmo uma pessoa a quem chamam Morte? Será que existe vida depois da morte?
Do meu ponto de vista, acho que sim! Existe uma Morte, mas que não é visível como se pressupõe, é um ser invisível que anda de um lado para o outro. É um ser mais poderoso que Deus ou Cristo, cujas existências são duvidosas, pois é Ela que comanda a vida.
Mas Ela não trabalha sozinha, desde sempre teve a ajuda preciosa do Homem. O Homem mata-se a si próprio à procura de soluções e de respostas.
Já imaginaram quantas vezes, como invisível que Ela é, nos cruzamos com a morte? Quantas vezes não estará ela ao nosso lado, mesmo ao nosso lado? E nós nem damos conta disso....
Sim, também acredito que existe uma vida pós-terrena, tanto como extraterrena. Acho pouco provável que não haja nenhuma compensação para a puta de vida que aqui levamos.
Se vivemos para morrer, se viver significa sofrer, tem de haver uma compensação e essa será a vida após a morte.
Mas será uma vida onde haverá paz, onde não existe guerras, ódios, ciúmes, rancores...?
Não sei, acho pouco provável, mas gostaria de acreditar que sim....


1998

setembro 12, 2004

Morte e Salvação (V)

Epílogo
Este conto começou por ser um projecto onde iria escrever alguns factos da minha vida, dando-lhes, obviamente, uma ar macabro, trágico, mórbido e frio.
Desde o princípio que quis transmitir em toda a história uma frieza arrepiante, que fizesse as pessoas pensar no verdadeiro sentido da vida e a sua ligação com a morte.
Todo o enredo da história veio-se mudar numa noite em que travei uma grande luta com o sono e de repente veio-me à cabeça muitas histórias e a ideia de incluir a Morte no enredo. Rapidamente acendi a luz, peguei numa caneta e comecei as escrever, por tópicos, todas as minhas ideias e, por incrível que pareça, todos os diálogos (menos o grande diálogo da parte final) de William com a Morte.
Nessa noite ficou esquematizado todo o conto, todas as histórias, todas as ideias. Ainda o conto não tinha chegado a meio.
Curiosamente isto aconteceu poucas horas antes da morte do meu avô. Desde essa altura que me interrogo porque é que se realizou toda a minha história na minha cabeça, horas antes da morte do meu avô. Terá sido um prenúncio? Terá a Morte visitado-me antes de levar o meu avô? Estaria Ela ali ao meu lado a inspirar-me? E os diálogos? Terão sido aqueles que eu tive com Ela? Quanto mais penso neste assunto, mais acredito nele.
Dias mais tarde, fiz uma viagem a Évora, viagem esta que me viria a inspirar para uma parte, ou um conto, da história. A viagem a Orlando e a tragédia entre Kim, Chris, e Jackie. Como já disse, alguns destes acontecimentos retratam pedaços da minha vida, por isso resolvi integrar também a viagem a Évora.
Essa história foi escrita com tanta raiva, com tanta fúria, com tanto ódio, que eu ainda hoje não consigo perceber como é que escrevi aquilo. Para mim é a parte mais bem conseguida do conto porque é a parte onde todos os sentimentos sobre a morte e toda a raiva pelo ser humano estão genialmente implícitos. Também temos de ver que foi escrito algumas semanas depois da morte do meu avô, altura em que ainda estavam reminescentes toda a dor e todos os sentimentos ligados ao facto.
A partir dessa altura, decidi dar à Morte uma imagem parecida com aquela que Ingmar Bergman deu no seu filme O Sétimo Selo. E dar-lhe um ar supremo, uma ideia de deus, de senhora do universo. Por isso escrevi a Morte com letra grande, exactamente para Lhe dar uma imagem de deus.
Há quem tenha paixões pelo Diabo, por Lobisomens, por Vampiros e Dráculas ou mesmo por Deus, e faça filmes, livros ou séries sobre eles. Eu quis ir mais longe criando um novo mito e um novo deus, a Morte, assunto sobre o qual as pessoas têm medo de falar ou escrever.
Eliminei qualquer ligação religiosa, qualquer ligação a Deus ou ao Diabo, criando um único e só deus, um único e só ideal, a Morte.
Desde a primeira aparição da Morte que quis mostrar que a Morte sempre teve e sempre terá como braço direito o ser humano. O Homem sempre ajudou a Morte no seu trabalho, matando-se a si mesmo, e cada vez mais a Morte trabalha menos, pois o Homem inventa, cada vez mais, meios mortíferos.
A parte final da história, de pois da morte de William e o seu encontro final com a Morte, foi a parte que mais tempo demorou a ser realizada. Estive, mais ou menos, três meses a pensar como é que escreveria aquela parte. Não podia ser de qualquer maneira, tinha que transmitir uma certa mensagem, tinha que ter um certo sentimento, e para isso tinha que estar num dia cinzento...
Apesar de eu considerar que este final ainda não era bem o que eu queria transmitir, dou-me por satisfeito.
Acho que apesar de ser um conto mórbido, cinzento, macabro e também controverso, consegui transmitir alguns sentimentos e algumas questões sobre a vida e sobre a sua ligação com a Morte.
Espero que depois desta leitura as pessoas pensem mais na vida e na Morte!!!!
Porto, 7 de Março de 1998

setembro 11, 2004

Morte e Salvação (IV)

VII
Tenho a impressão de que voltei a sentir aquele cheiro a enxofre e humidade em casa de Emílio, quando Mary Ann morreu, mas no meio de tantos cheiros nauseabundos que pairavam aquela casa, que mais parecia um hospital, não tenho bem a certeza.
Num espaço de dois meses tinham ocorrido duas mortes, bastante significativas para mim. Mas isto não era nada, era só o princípio.
Meses depois reinava novamente a calma. Era a época morta da imprensa, parecia que todo o mundo andava em paz. Todos viviam as suas vidas com calma, todos menos Jack que, infelizmente, tinha muito trabalho na televisão. Jack andava cansado, tinha muito pouco tempo para descansar, chegava a dormir só duas horas por dia e às vezes passava três dias sem dormir.
Uma noite, eu e Emílio, convidámo-lo para ir ao cinema, mas ele rejeitou.
— Desculpem-me, mas hoje não estou com disposição para isso. Sinto-me mal. Não sei o que tenho. Fico cansado só de me levantar e ir até à cozinha, nunca me aconteceu isto.
— Não faz mal. — disse eu — Até te vai fazer bem ficar em casa a descansar.
— Eu vou ver se consigo dormir um bocado. De qualquer maneira passem por aqui no final do filme.
Emílio e eu fomos ver o filme O Inferno / L’Enfer de Claude Chabrol. No final do filme chovia torrencialmente por isso, ainda fomos até um café, onde ficamos a conversar um bocado.
De regresso a casa, passamos pela casa de Jack. Logo à porta da casa de Jack, Emílio encontrou uma colega dele.
— Emílio, — disse eu — eu vou subindo para ir falando com Jack.
— Está bem! Eu já lá vou ter, não me demoro nada.
Fui subindo devagar, enquanto me secava, as escadas que davam até à casa de Jack. Ao chegar lá cima, estranhei a porta estar aberta. Mal entrei senti, novamente, um forte cheiro a enxofre e a humidade. Assustado corri até à sala onde encontrei Jack caído no chão, morto. A sua cara não mostrava sofrimento, mas as suas mãos estavam angústiamente agarradas ao seu peito. Ajoelhei-me à beira dele e tentei ver se ele ainda estava vivo. Tinha ainda os olhos abertos, a sua boca tinha espuma e o seu corpo ainda estava quente. Quando me levantei, para chamar Emílio, olhei para um canto da sala e Vi-a. Ela estava mesmo ali à minha frente a olhar para mim. Nunca tinha visto a Morte de frente, ao princípio assustei-me, mas depois tive uma sensação de calmia e paz. Não Lhe conseguia ver o rosto, só quando Ela se aproximou de mim é que Lhe consegui ver o rosto. Não se pode dizer que era um rosto belo, muito pelo contrário, era um rosto soturno e sombrio.
— Estamo-nos sempre a cruzar. — disse Ela, numa voz arrepiante e cavernosa — Nunca te esqueças de que ando sempre ao teu lado.
Estava tão perplexo a olhar para Ela que não consegui dizer palavra, mas eu queria perguntar-lhe: «Porquê? porque é que foi Jack? Não podia ser outro? Porquê?». Não me saiu nada. A Morte deve ter lido o meu pensamento e respondeu:
— Ele foi porque assim estava destinado. — e, com um movimento da foice, desapareceu.
Nesse mesmo instante entrou Emílio na sala.
— O que é que foi? — perguntou ele, olhando, assustado, para o corpo de Jack — O que é que se passou? William? William? Acorda!! — acordei do meu transe e olhei para Emílio — Ele está morto?
— Está, Emílio. Está! — e, pela primeira vez, correram algumas lágrimas no meu rosto. Nunca tinha chorado pela morte de alguém — A Morte veio buscá-lo e já foi embora. Ele foi porque assim estava destinado.
Não sei muito bem porque é que disse aquilo, saiu-me.
Emílio foi, então, chamar uma ambulância, enquanto eu fui fechar os olhos de Jack. Quando a ambulância chegou ainda estava eu sentado no chão a olhar para Jack.
Três dias depois decorreu o funeral e o respectivo enterro de Jack. Após o funeral eu e Emílio decidimos tirar umas férias, para descontrair e reflectir sobre as nossas vidas. Tinham sido muitas mortes consecutivas e, tanto eu como Emílio, estávamos a precisar de um descanso moral.
...
Devo confessar que a morte de Jack me abalou muito. O mais estranho de tudo foi aquele encontro insólito com a Morte. Porque será que ela falou comigo? Porque é que fui incapaz de falar com Ela? Porque será que me senti calmo e sereno ao pé Dela, como se estivesse à beira de alguém com quem tenho uma grande amizade e afeição? Porquê?
Volto ao princípio, muitas perguntas, nenhuma resposta.
...
Logo na semana a seguir ao funeral de Jack, Emílio, Julie e eu fomos até ao México, local calmo onde podíamos relaxar calmamente. Tínhamos tirado um mês de férias, tempo suficiente para esquecermos os nossos problemas.
O México era uma terra bonita e os mexicanos eram muito simpáticos connosco. Ficamos instalados num hotel no centro da Cidade do México.
Emílio conhecia bem o México por isso, levou-nos a visitar os templos Incas, incluindo o famoso Templo do Sol, e todas as outras coisas fantásticas que o México proporciona e, rapidamente, esquecemos os problemas que nos tinham levado àquela viagem.
Quase no final das férias decidimos fazer umas compras no centro da cidade. A meio da tarde fomos até uma esplanada, onde ficamos a descansar.
— Compraste muita coisa Emílio? — perguntou Julie — Nós fartamo-nos de comprar.
— Ainda comprei algumas coisas. Uma pessoa perde-se no meu meio de tanta coisa bonita. Tenho sempre que me controlar para não comprar tudo.
— Pareces mesmo uma pessoa que eu conheço — disse eu, olhando de lado para Julie.
— Até parece... — disse Julie irritada.
— William, eu vou ao hotel buscar dinheiro. — disse Emílio — Eu apanho o autocarro e em dois minutos estou lá.
— Está bem! Não demores.
Eu e Julie ficamos a ver Emílio na paragem, que era mesmo em frente à esplanada. Como aquela paragem era a principal do centro da cidade estava bastante pessoal à espera do autocarro.
Quando o autocarro chegou, a confusão gerou-se. As pessoas passavam à frente umas das outras, empurravam, espezinhavam, chutavam, enfim, uma total anarquia. Emílio com algum custo lá conseguiu entrar.
O autocarro tinha andado poucos metros quando se deu um estrondo enorme! Olhei de repente para o autocarro e vi este a arder. Grandes labaredas saiam do autocarro, que se tinha transformado numa enorme bola de fogo.
O pânico gerou-se rapidamente, as pessoas fugiam, gritavam, desmaiavam. Eu fiquei estupefacto a olhar para o autocarro, Julie olhava, também, incrédula. Senti de repente um forte cheiro, que eu bem conhecia, olhei para o outro lado da rua e Vi-a. A Morte estava mesmo em frente a mim, olhou--me nos olhos e sorriu. Avançou em direcção ao autocarro e desapareceu no meio das chamas.
Logo de seguida chegaram os bombeiros e a polícia. Apagaram as chamas com alguma rapidez e procuraram ver se havia sobreviventes. Coisa que rapidamente declararam ser impossível. Todos os corpos encontravam-se carbonizados sendo impossível reconhecer algum deles.
A polícia pediu alguns testemunhos às pessoas e abriu um inquérito, alegando que possivelmente se tratava de um atentado.
Julie e eu afastámo-nos do local e fomos até ao hotel. Três dias depois fomos assistir à cerimónia fúnebre celebrada em nome de todos aqueles que morreram no atentado. E no dia seguinte deixamos o México.
VIII
Quando já pensava que tudo tinha acabado, a Morte apareceu novamente para levar mais um amigo meu. Porquê? Porque é que a Morte aparecia sempre ao meu lado? Porque é que Ela olhava sempre para mim? Porque é que tinha a sensação que já a conhecia?
Já está a anoitecer. Acendo as velas, releio aquilo que já escrevi e tento encontrar alguma explicação para tudo o que aconteceu. Por enquanto nada, mas sinto que estou perto. Sinto que falta muito pouco para descobrir tudo.
Passaram-se algumas semanas depois da morte de Emílio. O nosso país andava em revolução, a população tinha-se revoltado contra o presidente e gerou-se um motim. Toda a população estava em guerra com o governo e as forças policiais.
A mim coube-me fazer a reportagem da revolução. Andava de um lado para o outro procurando os sítios onde a guerra estava mais quente.
Esta revolução durou algumas semanas, sempre com grande vantagem para o povo. Eu, é claro, estava do lado do povo, mas como repórter, tinha de me abster e ser imparcial, não podia demonstrar os meus ideais.
Certo dia, já na recta final da revolução, estava eu no centro a fazer a reportagem, quando vi a Julie.
— Julie! — chamei — Que estás tu aqui a fazer?
— Sai agora do escritório. — disse Julie — Não me estou a sentir bem.
— Está bem, mas não podes ficar aqui muito tempo. Isto está muito instável pode estourar a qualquer momento.
— Não te preocupes. Eu vou-me já embora!
De repente, uma força policial entra na praça, a população, revoltada, começa a atirar contra a polícia, que responde também com balas. Bombas, gases, tiros, metralhadoras, passavam de um lado para o outro. Grande confusão foi gerada. Nesse instante a polícia, num ataque súbdito, disparou contra a população. Protegi-me entre os prédios para não ser atingido. Gritos de dor, de medo, de angústia e de raiva ecoavam por todo o lado.
De repente lembrei-me de Julie. Onde estaria ela? Olhei por entre os prédios e vi ela a fugir. Corria, perdida, sem saber para onde ia. A polícia disparava para todos os lados e com uma rajada de metralhadora atingiu Julie, que cai no chão de joelhos.
NÃÃÃÃÃÃOOOOO!!!!!!!!!! — gritei eu. — Filhos da puta!!!!
Corri desenfreadamente para ela. Amparei-a nos meus braços, ela ainda respirava, olhou para mim sorriu, disse-me que me amava e morreu. Furiosamente peguei numa arma que encontrei junto a um morto e disparei contra o polícia que tinha disparado contra Julie. Descarreguei todos os tiros que tinha na arma. Pouco depois, a polícia bateu em retirada, fugindo da população que tinha ganho esta batalha.
Fiquei ali à beira de Julie, olhando para ela, chorando. Chorava de dor, uma dor aguda que é inexplicável.
— Voltámo-nos a encontrar! — disse uma voz, por trás de mim.
Eu conhecia aquela voz, aquele cheiro a enxofre e humidade. Sim, era Ela! Voltei-me, a Morte estava mesmo ali, ao meu lado. Levantei-me e perguntei:
— Ainda não chega?? Quando é que acaba com estas mortes?? Quando é que acaba???
— Calma! Como tu sabes eu estou sempre ao teu lado, por onde quer que vás, aonde quer que vás. A tua missão está a chegar ao fim. Quando quiseres ir chama por mim e eu venho buscar-te.
— Missão?? Mas que missão?
Não obtive qualquer resposta. A Morte limitou-se a sorrir e desapareceu. Fiquei ali pensativo à beira de Julie. Só sai quando vieram buscar Julie.
...
Era incrível! Como era possível que a Morte leva-se Julie? Logo ela. Choro.
Ahhh, Julie! Se soubesses as saudades que tenho tuas. Será que eu tinha um trato com a Morte? Que missão era aquela que Ela me falou? Será que eu era o guia da Morte? Guiava-a até às suas vítimas? Esta ideia assusta-me!
Já é tarde. Vou dormir. Apago as velas e deito-me.
Amanhece. Acordo. Continuo rodeado de nuvens e silêncio. Um silêncio profundo.
...
Dias depois a revolução tinha acabado. O presidente tinha assumido a derrota demitindo-se. A população andava em festa. Toda a gente estava contente. Todos, menos eu, que andava com uma crise depressiva muito grave.
Deixei o jornal. Durante mês e meio não sai de casa. Depois, decidi-me e consultei um psiquiatra. Andei cerca de dois meses no psiquiatra, com algumas melhoras.
Ao princípio a psiquiatra não se acreditou muito na minha história e nos encontros com a Morte. Achava que eram ilusões minhas provocadas pela crise depressiva. Tentou que eu me esquece-se Dela, mas foi em vão.
Numa das sessões, na qual fui hipnotizado, o psiquiatra disse-me:
— Você não desiste da ideia da Morte. Até hipnotizado fala sobre ela.
— Falei, Sr. Doutor?
— Sim. E falou em mais uma coisa que me deixou intrigado.
— O quê, Sr. Doutor?
— Você falou numa missão. Disse que veio para cá realizar uma missão. Que missão é essa?
— Missão??? — disse surpreendido — Não sei de missão nenhuma. O que é que eu disse mais?
— Só isso que tinha uma missão para cumprir aqui. Mas aqui onde? Onde é que você tem de cumprir essa missão?
Tudo se tornou mais claro agora. Sim percebi na altura, que tinha sido incumbido de uma missão. Qual? Não sei! Mas sabia perfeitamente onde era.
— Aqui mesmo, Sr. Doutor. — respondi — Aqui na terra, juntos ao ser humano.
— Aqui? Bom, veremos isso numa outra sessão. Queria fazer agora um teste consigo para avaliar o seu comportamento. Quero saber se já melhorou mais alguma coisa desde o mês passado.
O psiquiatra sentou-se na sua secretária.
— Vou-lhe dizer algumas palavras e você tem de me dizer em 10 segundos o que significa para si, ou um sinónimo.
— Tudo bem, Sr. Doutor! Pode começar.
— Viver?
— Sofrer
— Vida?
— Inferno
— Morte?
— Salvação
— Porra! Assim não dá! Você não melhorou nada. Acho que até piorou. MORTE É SALVAÇÃO? Isto assim vai custar um bocado curar.
— Deixe estar, Sr. Doutor. Só me resta uma solução, e com certeza não é esta. Eu sei o que tenho de fazer.
Naquele momento tinha apercebido da minha situação no mundo. Já nada tinha lá a fazer. A minha missão tinha acabado.
Peguei no carro e meti pela estrada fora, sem destino, sem rumo. Sim, pela primeira vez chamei pela Morte. Sabia que era a única salvação para sair daquele inferno. Não me lembro muito bem do que se passou, só me lembro de ter sentido mais uma vez aquele cheiro a enxofre e humidade. Olhei para o lado e lá estava Ela.
— Chamaste-me a cá estou eu — disse Ela — O teu desejo será cumprido.
Sorriu. Depois só me lembro de ter ouvido uma buzina e de ter visto uma luzes enormes à minha frente. Ouvi um grande estrondo e não me lembro de mais nada, só de ter acordado aqui.
IX
Será mesmo verdade? Terei morrido? Agora torna-se tudo muito mais claro. Agora lembro-me de tudo. Eu era ( e se calhar ainda sou) o braço direito da Morte. Eu era o seu assessor. Fui enviado para a terra com a missão de guiar a Morte até às suas vitimas.
Sim, o meu maior medo tornou-se real. Eu sou o melhor amigo da Morte. Agora percebo porque é que aquele cheiro não me era estranho, porque é que me sentia calmo perante a Morte.
Não, eu, se soubesse, não teria aceitado este trabalho. O ser humano é muito complexo, difícil de entender. Se eu soubesse que para se ser ser humano é preciso sofrer, não teria aceitado nunca esta missão. Mas eu não sabia o que era ser humano... não sabia que se esquecia toda a nossa história quando se nasce, não sabia que tinha de viver.
Ahhh!!!! Como aqui se está bem. Sem a confusão humana que é o mundo. Sem a raiva, a inveja, o ódio, o pudor e todas as outras coisas que só os humanos são capazes de realizar.
Espera! Estou a sentir outra vez este cheiro, olho para o lado. É Ela que vem aí. Aproxima-se.
— Olá William! — diz Ela — Já sabes agora tudo?
— Já! Já sei tudo, menos uma coisa. Porque é que fiquei aqui durante 2 ou 3 dias? E porque é que sentia uma vontade insaciável de escrever tudo o que se passou?
— Ah! Ah! Ah! Sabes aqui é para onde vêm as pessoas depois de morrerem. São obrigadas a escrever o balanço da sua vida.
— E depois é arquivado no Arquivo Geral?
— Estás ver como já estás a perceber? Claro, é arquivado e depois as pessoas podem consultar todas as suas vidas passadas.
— Pois... Estou a ver. Mas eu não tenho lá nada, pois não?
— Não, mas também não precisas! Desempenhas-te uma boa missão. Fizeste muito bem o teu trabalho. Agora só voltas lá se quiseres.
— Não, não quero! Eu agora queria era estar com os meus amigos. Aqueles por quem eu sofri.
— Como te portas-te bem lá embaixo e como sofreste como ser humano, devo-te essa regalia. Anda comigo.
Sigo a Morte. Caminhamos lentamente.
— Vou-te levar para junto dos teus amigos, mas tens de me prometer, que continuas ao meu serviço. Fazes todos os trabalhos que te pedir.
— Desde que não seja para voltar à terra.
O Morte ri. É impressionante a imagem que o homem tem da morte, acho que nunca nenhum homem consegue imaginar a Morte a rir. Acham-Na um ser cruel sem piedade.
O homem tem medo da Morte. Pobres ignorantes.
Paramos. A Morte olha para mim, sorri e com um movimento da foice ambos desaparecemos.

Morte e Salvação (III)

IV
Sinto cada vez mais uma vontade irresistível de escrever o passado. Mas porquê? Porquê? A única coisa que vejo à minha volta são nuvens, nada mais. Estarei eu no céu? Não, não pode ser, não me lembro de ter morrido e mesmo que tivesse, o céu não é deserto. Já não está tanto calor, sopra, agora, uma leve brisa que me refresca a cara enquanto escrevo. Relembro ainda Jerry, aquele que tinha capacidades de ser um grande jogador e que, por uma infelicidade, ficou incapacitado de jogar e de andar.
Pouco tempo depois, duas semanas antes do meu casamento com Julie, fizemos uma viagem de finalistas a Orlando, pouco antes de acabarem as aulas. Foi uma viagem de quatro dias, mas que deu para nos divertirmos bastante. Foi bastante pessoal, só Julie é que não pode ir, porque estava doente, mas foi Jack e Arthur, os meus melhores amigos.
Conheci Arthur no primeiro ano que fui para a faculdade, desde o primeiro dia que nos demos bem, mais tarde, fui eu quem lhe apresentou a Jackie, com quem ele namorava há já três anos.
Essa viagem foi espantosa, o pessoal era do melhor e toda a gente se dava bem. As noites em Orlando eram incríveis, era raro encontrar uma rua, ou um bar, sem ninguém, estava tudo a abarrotar. Mal se podia andar nas ruas.
No último dia que estivemos em Orlando, o terceiro dia da viagem, Arthur começou a “curtir” com a Kim. Não é que eu me importasse, mas quando os vi, ali, determinados e convictos assustei-me. Lembro-me de ter falado com Jack sobre o assunto.
— Não te preocupes. — disse Jack — Sabes como é o Arthur, ele anda chateado com a Jackie e agora está a curtir com a Kim só para lhe fazer ciúmes. Vais ver quando ele chegar, vai logo a correr para os braços da Jackie.
Não me fiei muito na conversa do Jack, fiquei na dúvida se era mesmo aquilo que Arthur queria. No dia seguinte tivemos de acordar cedo pois a viagem ia ser longa. Durante toda a viagem Arthur ia sempre agarrado nos braços de Kim, não se pode dizer que Arthur tivesse mau gosto, porque Kim era bastante bonita. Eu ainda andava intrigado com o tal casal.
— Não me digas — disse Jack, quando lhe falei outra vez no assunto — que estás com ciúmes da Kim? Ai, ai, ai, quando a Julie souber..... Vai ser bonito!!
— Não é nada disso, estúpido! — disse eu, que começava a ficar irritado — Quanto é que apostas comigo como Arthur, quando chegarmos à universidade, vai cortar o namoro com Jackie?
— Não!!! — disse Jack, espantado — Não, Arthur nunca teria coragem de fazer uma barbaridade dessas. Fazer isso com a Jackie?? Não.
Pois, pois!! Se eu me fosse a fiar em ti, o mundo era quadrado e cor-de-rosa. As minhas dúvidas foram resolvidas mal cheguei na segunda-feira à faculdade. Não se falava noutra coisa, a não ser que Arthur tinha acabado o namoro com Jackie. Quando soube da notícia virei-me para Jack e disse-lhe:
— Estás a ver???? O que é que eu te tinha dito, caralho?
Fui ter com Jackie. Jackie estava sentada num banco, triste e solitária. Sentei-me ao lado dela e fiquei a conversar com ela.
— Andam por aí a dizer que ele curtiu com uma tipa na viagem. — disse Jackie, quase a chorar — É verdade? Diz-me, por favor! Com quem? Com quem?
— Não sei de nada — disse eu — Se ele curtiu ou não, o problema é dele. Agora quem era a rapariga, eu não sei. — É verdade. Eu menti. Sim, sim, eu sei que não se deve mentir, mas o que é que vocês queriam???? Que eu lhe disse-se que Arthur tinha curtido com a melhor amiga dela?? Não! Eu não lhe podia dizer isso. — Mas não te preocupes, vais ver que o Arthur ainda volta para ti.
— Oh!! Tu também nunca mudas, sempre a tentar ver as pessoas felizes.
De nada valeu eu ter mentido, pois na hora seguinte Jackie viu Arthur e Kim em alto “marmelanço”.
— William. — disse Jack, com a voz a tremer — Diz-me, aquela não é a Kim?
— Onde? — fiz-me de despercebido — Não a vejo.
— Ali. Ali, aquela “gaja” que está aos beijos com o Arthur.
— Não! Não deve ser ela. Deve ser alguém parecida com ela.
— É ela!! É ela!!! Puta do caralho. Vou foder-lhe os cornos.
Assustei-me com a reacção de Jackie. Tinha a cara vermelha, os olhos raivosos e manobrava as mãos como se tivesse a estrangular alguém.
— Tem calma, Jackie. Vamos ver se resolvemos as coisas sem recorrer à violência.
Mas Jackie não me quis ouvir e fugiu. Durante o dia todo nunca mais a vi. Fui falar com Arthur.
— Por que é que acabaste o teu namoro com a Jackie? — perguntei-lhe.
— Já estava farto dela, já não gostávamos mais um do outro. — disse Arthur com um sorriso nos lábios. — E depois encontrei a grande paixão da minha vida. A Kim.
— Isso é tudo mentira, Arthur. Pensas que eu não te conheço? A Jackie ama-te, ela gosta de ti, ela é louca por ti. Ela era capaz de se matar por ti. — Mais tarde arrependi-me de lhe ter dito isto, mas eu não podia adivinhar — Tu é que te chateaste com ela e, para te vingares, falaste com a Kim e começaram a curtir só para fazer ciúmes à Jackie. Por azar a coisa caiu para o torto e vocês apaixonaram-se um pelo outro. Certo?
Arthur não disse nada, limitou-se a olhar para o infinito. O sorriso que tinha nos lábios tinha desaparecido.
— Estou certo, ou não estou? Foi, ou não foi isto que se passou? Responde, caralho!!!
— Foi! — disse ele, com uma voz sumida — Foi exactamente isso que aconteceu. Nunca pensei que numa brincadeira inocente me viesse a apaixonar pela Kim. Mas quando nós combinamos tudo e começamos a sair e curtir juntos, descobri que ela era exactamente tudo o que eu queria. Era a mulher ideal.
— E a ela aconteceu-lhe o mesmo. Não foi?
— Exacto. Foi uma espécie de amor à primeira vista. Um bocado diferente.
— Então, porque é que não explicaste tudo à Jackie. Tu e a Kim iam falar com ela e explicavam, calmamente, o que tinha acontecido. De certeza que ela iria perceber, podia demorar algum tempo, mas ela iria perceber.
— Não sei..... Talvez sim, talvez não. Ela ficou muito magoada, não ficou? Eu fui um bocado duro com ela, não fui?
Acenei-lhe afirmativamente.
— Amanhã, — disse Arthur, com convicção — sem receios, vou falar com ela. Eu e a Kim.
No dia seguinte, de manhã, quando cheguei à faculdade fui perguntar a Kim se já tinham falado com Jackie.
— Ainda não. — disse Kim — Estou à espera de Arthur para falarmos com ela.
Entretanto apareceu Jackie, mas não era aquela Jackie que toda a gente conhecia. Era uma Jackie que trazia raiva no rosto, fúria nos olhos e desgosto no coração. Jackie chega à beira de Kim e disse:
— Tu, minha linda, estás marcada. Hoje não sais daqui viva. — Jackie abre o casaco, mostrando a coronha de uma pistola. — Prepara-te.
— Mas, Jackie.... — disse Kim, apavorada — Eu e Arthur queremos falar contigo sobre o assunto.
— Tu e o Arthur! Tu e o Arthur! Pois eu quero que vocês se fodam!! Não há nada para discutir.
Quando acabou de falar, Jackie foi-se embora, sem mais palavras. Kim ficou assustada e com medo.
— Não te preocupes, Kim. Aquilo foi só para te intimidar. Só para te assustar. A Jackie era incapaz de fazer uma coisa dessas.
Na hora a seguir, Chris, um grande amigo de Jackie, estava com uma fita métrica a medir Kim.
— O que é que estás a fazer, Chris? — perguntou Kim, assustada.
— Cala-te!! — disse Chris num tom de brincadeira — Estou-te a tirar as medidas para o caixão.
Kim ficou apavorada, começou a chorar e desatou a correr. Eu ainda me ri um bocado com aquela cena, pensava que aquilo era tudo montado pela Jackie para assustar Kim. Se a verdade fosse essa ela tinha conseguido. Mas eu ainda andava preocupado com uma coisa: a arma que Jackie trazia no bolso. Seria verdadeira?
V
Está a ficar escuro e frio. Visto o meu casaco e acendo as velas. Sinto-me cansado, dói-me as costas. Vou continuar a escrever e depois vou dormir.
Horas mais tarde chega Arthur à Faculdade. Veio ter comigo e perguntou por Kim. Levei-o até ela. Estávamos os três a combinar o que iríamos dizer a Jackie e como o deveríamos dizer, quando Jackie apareceu. O seu rosto mostrava ainda mais raiva e os seus olhos mostravam uma fúria inexplicável. Senti nesse momento um leve cheiro a humidade e enxofre.
— Jackie, — disse Arthur, sorrindo — era mesmo contigo que nós queríamos falar.
— Já disse que não há nada a dizer!! — gritou Jackie.
— Mas, Jackie, — disse eu — Tenta pelo menos ouvir a explicação que eles têm para te dar.
— Não quero saber. Não quero saber de nada.
— Jackie, — disse Kim, assustada — tu és a minha melhor amiga. Eu gosto muito de ti e só te quero explicar o que aconteceu.
— Tu eras, eras, a minha melhor amiga. Antes de me apunhalar pelas costas.
Jackie tira o revólver do casaco e aponta para Jackie.
— Com amigas destas eu não preciso de inimigos.
Eu ainda corri para Jackie, mas não fui a tempo. Jackie descarregou dois tiros certeiros em Kim, que caiu no chão, inerte, morta. Arthur ajoelhou-se rapidamente olha para Kim e começa a chorar.
— Não!!!!!!!! — gritou Arthur — Não!!!!!
Jackie continuava com a arma apontada, mas desta vez para Arthur. Eu agarrei-lhe a mão com tanta força que a obriguei a largar a arma. Arthur continuava no chão a chorar. Eu fiquei durante um bocado agarrado à mão de Jackie, com medo que ela fizesse outra asneira. Arthur levantou-se, pegou na arma e apontou-a para Jackie.
— Sabes o que mereces agora, minha puta? — disse Arthur, com os olhos húmidos e a mão a tremer — Sabes? Tu merecias morrer. Mataste a Kim, aquela que seria, talvez, o maior amor da minha vida. Eu não merecia isto foste tu que quiseste.
Eu ainda tentei evitar que Arthur disparasse, mas mal me aproximei dele, levei um soco que me deitou ao chão.
— E ela? — disse Jackie — Sabes o que ela me roubou? Ela roubou-me aquilo que eu mais gostava neste mundo, toda a razão da minha existência, toda a fonte da minha alegria, isto é: TU!!
Arthur olhava para Jackie como se procurasse alguma razão para a não matar, como se procurasse alguma coisa lá dentro que ainda o fizesse gostar dela. Não deve ter encontrado nada, pois apontou a arma directa para a cabeça de Jackie.
— Deve haver mil e uma razões para não te matar. — disse Arthur, raivosamente — Neste exacto momento não encontro nenhuma.
— Não!! — gritei eu, ainda caído no chão, meio inconsciente — Arthur, não, por favor.
Mas Arthur não me ligou, ou não me ouviu, e disparou. Jackie caiu no chão atingida no peito.
— E-e-e-eu a-a-am-am-amava-te, A-A-Arthur!! — disse Jackie, antes de fechar os olhos e morrer.
Arthur ficou a olhar para Jackie, depois ajoelhou-se à beira de Kim. Eu levantei-me, ainda tonto, e fui ter com Arthur.
— Sabes, William, — disse Arthur — a Kim era rapariga espectacular. Eu amava-a.
— Anda embora. — disse eu, pegando-lhe na mão — Anda, antes que venha a polícia. Já acabou tudo. Nada mais há a fazer.
— Não! Ainda não acabou. — disse Arthur, levantando-se — Ainda falta uma coisa.
Arthur leva a arma à cabeça e diz:
— Eu não tenho nada a fazer aqui. Não posso viver sem a Kim.
Arthur olhou para mim, depois para Jack e Julie que tinham acabado de chegar, sorriu e disparou.
Eu não podia acreditar no que estava a ver. Julie veio ter comigo, aterrorizada, e abraçou-se a mim. Ficamos abraçados durante muito tempo, enquanto na faculdade o pânico era geral. Expliquei a Jack tudo o que tinha acontecido, tintim por tintim.
— Percebeste tudo? — perguntei eu. — Consegues explicar tudo o que aconteceu à Polícia?
— Acho que sim. — disse ­Jack — Vou tentar.
— Tenta. — disse eu — Eu não vou conseguir estar aqui por muito tempo. Vou para casa com a Julie.
Era incrível o cheiro a enxofre que se tinha espalhado pela Faculdade. A enxofre e a humidade.
Afastei-me, com Julie, da faculdade. Poucos minutos depois chegou a polícia e Jack contou tudo o que se tinha passado.
...
Aquele cheiro a enxofre e humidade intrigou-me muito. Não sabia o que era, nem de onde vinha. Mas sei que já tinha sentido aquele cheiro antes, mas onde? Quando? Aquele cheiro está ligado a alguma coisa, mas o quê?
Está de noite. Estou cansado. Ainda estou a pensar em Arthur, Kim e Jackie. Como foi possível que eu não tenha conseguido evitar aquela tragédia? Como é que não me apercebi logo do que iria acontecer? Ohh, destino, como foste capaz de matar a Kim e a Jackie? Porque é que te matas-te, Arthur? A Kim era tão bela, com os seus olhos azuis e o seu cabelo loiro, era uma deusa. Mas Jackie não lhe ficava atrás, os seus provocadores olhos castanhos, o cabelo castanho claro e a sua maneira exuberante de se vestir, tornavam-na um pólo de atracções dos olhares masculinos.
Vou dormir. Amanhã continuo a escrever.
Acordo! Continuo rodeado de nuvens e só, completamente só. Os dias começam a ficar mais frescos. Desconfio que se está a aproximar o Inverno. Levanto-me e sento-me na secretária. Não se ouve ruído algum. Silêncio, silêncio e mais silêncio. Começo a escrever, cada vez que escrevo recordo melhor o meu passado, sim, sinto que é a escrever que vou descobrir o que me aconteceu. Sinto que estou perto.
...
Depois de ter acabado a Faculdade e de ter casado com Julie, fui trabalhar para um jornal como repórter. Foi neste ofício que conheci Emilio, um mexicano que viria a ser um grande amigo meu, e Hughes.
Um ano depois, já Julie tinha conseguido concretizar o seu sonho e trabalhava numa revista de moda e Jack trabalhava na televisão como redactor e jornalista, começou, em queda livre, uma onda de desastres. Num curto espaço de tempo, cerca de um ano e meio, muita coisa aconteceu.
A primeira foi num dia em que reinava a calma no jornal, havia pouco trabalho a fazer, não se tinha passado nada de especial e as notícias mais importantes estavam já feitas.
Estava a conversar com Emílio, quando o telefone tocou.
— Redacção, boa tarde! — disse Emílio ao atender o telefone.
— Boa tarde! — disse uma voz grossa e rouca do outro lado — Com quem é que estou a falar?
— Está a falar com o Emílio, Sr. Fergunson.
— O William está por aí?
— Está aqui mesmo ao meu lado, Sr. Fergunson.
— Passa-lhe o telefone.
Emilio passou-me o telefone para as mãos.
— Ele que falar contigo. — disse Emílio, tapando o auscultador.
— Diga, Sr. Fergunson. — disse eu — O que é que se passa?
— Estou a estranhar o Hughes ainda não ter aparecido. — disse o Sr. Fergunson — Estás a fazer alguma coisa?
— Não, senhor. Neste momento não estou a fazer nada.
— Então, eu queria que tu e Emilio fossem até casa dele ver se está tudo bem.
— Deve estar. Ele não deve ter aparecido, porque como anda com alguns problemas com a mulher, e, como consequência disso, anda muito nervoso, deve ter ficado em casa a descansar, ou a reflectir.
— De qualquer maneira passem por lá. É que eu já tentei telefonar, mas ninguém atende.
Sorri para Emílio e desliguei o telefone. Fomos até à garagem a partimos em direcção à casa de Hughes. Pelo caminho íamos a falar sobre o assunto.
— Coitado. — disse eu — Ele está a passar uma fase muito má. Aliás, nem sei como é que ele tem conseguido aguentar.
— Mas afinal o que é que se passa? — disse Emílio — A mulher deixou-o, foi?
— Não foi só isso. Além de o ter deixado, fugiu com o “HungryCat”.
— O “HungryCat”, o pior “dealer” de todos os tempos? Aquele que a polícia anda à procura à mais de dois anos? Aquele que se supões ter ligações com a máfia?
— Esse mesmo. E o pior de tudo é que a mulher, antes de fugir, pediu-lhe uma grande quantia de dinheiro e Hughes recusou-se a pagar. Parece que a mulher telefona-lhe todos os dias a ameaçá-lo e a insultá-lo.
— Há quanto tempo anda isso a acontecer? — disse Emílio, impressionado com o que eu lhe tinha acabado de lhe dizer — Não deve ser assim há muito, porque senão eu já tinha sabido.
— Ele já anda nisto à três meses, só que não fala a ninguém sobre o assunto, excepto a mim.
— Já estamos a chegar!
Parei o carro mesmo em frente à casa de Hughes. Tocamos à porta, mas ninguém atendeu. Estranhei o facto de Hughes não estar em casa, nem ter aparecido ao trabalho, por isso resolvi dar uma volta à casa, alguma coisa não estava a correr bem. Sentia um arrepio pela espinha abaixo.
Espreitei por uma janela que dava para a sala, reparei que a luz estava acesa e chamei Emílio.
— Ele tem que estar em casa — disse eu — A luz da sala está acesa.
— Pode não estar ele.... — disse Emílio, com receio — Pode ser outra pessoa.
Tinha um pressentimento que as coisas não estavam a correr bem e continuei a volta pela casa. Descobri uma janela aberta, a janela do quarto. Tive de me apoiar nas costas de Emílio para poder chegar à janela. Mal me apoiei no parapeito da janela e espreitei para dentro do quarto, fiquei paralisado.
— Foda-se — disse eu, completamente desacreditado naquilo que os meus olhos estavam a ver.
Hughes estava pendurado com uma corda no pescoço, o rosto pálido ainda transmitia algum sofrimento, mas o pior de tudo era o cheiro que estava no quarto, Hughes já devia estar morto há mais de 24 horas.
— O que é? — perguntou Emílio, enquanto eu descia das suas costas— O que é que se passa?
Eu não consegui dizer nada, só apontava para a janela. Emílio intrigado com o que se estava a passar, subiu para as minhas costas e espreitou pela janela.
—Foda-se — disse Emílio.
— Isso já eu tinha dito.
— Ajuda-me a entrar no quarto, que eu vou-te abrir a porta.
Após algum custo, Emílio conseguiu entrar no quarto. Dirigi-me para a porta principal da casa e passado alguns minutos Emílio abriu a porta.
— Está um cheiro insuportável lá dentro. — disse Emílio.
Tapámos a cara com um lenço e fomos até ao quarto de Hughes. Revistámos o quarto à procura de alguma carta que Hughes tivesse deixado. De repente reparei que Hughes tinha alguma coisa na mão. Só com a ajuda de Emílio é que consegui tirar os papais que Hughes tinha na mão. Eram duas cartas. Uma era da mulher, a outra era dele.
Abri a carta da mulher. Dizia mais ou menos isto:

Meu grandessíssimo Cabrão:
Ou pagas aquilo que nós queremos ou seremos
obrigados a torturar-te até à morte? Mas não esperes que seja uma tortura leve,
não... vai ser uma tortura bastante demorada, para que sofras durante muitos
anos até à morte.

Muitas Felicidades,
dos teus queridos e
adorados:
Erika & HungryCat.

VI

Após ter lido a carta em voz alta, olhei para Emílio. Emílio pegou na outra carta e passou-ma para a mão.
— Prefiro que sejas tu a ler. — disse Emílio — Eu não tenho coragem.
Na carta estava escrito: «A William, a Emílio e a quem mais possa interessar...». Estremeci de medo antes de começar a ler a carta.

«Poucos sabem o sofrimento que passei nestes últimos meses. Ameaças, telefonemas a altas horas da noite, contribuíram muito para esse sofrimento.
Perdi toda a liberdade que tinha. Não podia sair de casa sem que uma pessoa anónima viesse à minha beira para me insultar ou ameaçar. Tentei mudar de casa e mesmo assim as ameaças não pararam, sentia-me observado, sentia-me seguido.
Não, não dava para continuar assim. Preferi morrer do que andar a viver com todo esse sofrimento.
Que me perdoem todos os meus amigos, que vão sofrer bastante com a minha morte, mas espero que percebam a minha situação.

Adeus.
Adeus mundo estúpido.
Adeus humanidade rancorosa.
Adeus Homem burro.
Adeus Mulher tentadora.
Adeus, Adeus, Adeus.................»

Ao ler a carta senti uma certa angústia e, também, uma profunda raiva. Desconfio que se Erika aparecesse à minha frente, eu não me controlaria e seria capaz de a matar.
Telefonei para a polícia e expliquei-lhes o caso. Pouco tempo depois já a casa estava cheia de fotógrafos e polícias.
— Então, — perguntou um polícia a Emílio — ele era ameaçado pela mulher e pelo seu amante?
— Era sim, Sr. Guarda. — respondeu Emílio — E temos aqui uma carta que prova muito bem isso.
Emílio entregou ao polícia as cartas que Hughes tinha guardado na mão.
— E não há mais cartas da sua mulher? — perguntou o polícia.
— Da minha mulher? — indignou-se Emílio — Mas eu não sou casado Sr. Guarda. Por acaso já tenho data de casamento marcada, mas.....
— Não é nada disso!! — interrompeu o polícia — Peço desculpa se fiz mal a pergunta, mas o que eu queria dizer era se não encontraram, ou não têm conhecimento, de mais cartas enviadas pela mulher do Sr. Hughes.
— Deve haver mais. — disse eu — Porque Hughes falou na sua carta de várias cartas. Mas, se calhar, ardeu-as ou rasgou-as.
— Sr. Dreed!! — disse outro polícia, ao entrar no quarto — Encontrei no escritório uma data de cartas enviadas pela Sr.ª Erika.
Enquanto polícia foi continuando as suas investigações, e depois de eu e Emílio termos deixado os nossos dados identificativos, eu e Emílio saímos daquela casa e fomos até ao jornal dar a notícia. Emílio ficou encarregado de fazer a cobertura da notícia, primeiro tinham pensado em mim, mas eu rejeitei.

...

Fiquei muito sensibilizado com a morte de Hughes. Era um dos meus melhores amigos que tinha morrido, e tudo devido à estupidez gananciosa da sua mulher. Ela própria não devia desconfiar que Hughes se fosse matar, aliás, ninguém esperava.
Tenho reparado que já estou aqui há alguns dias e ainda não comi nada, nem tenho fome.
Já é uma da tarde! O tempo passa depressa enquanto escrevo, também não se passa nada de especial aqui. Silêncio e solidão é só o que há. As únicas coisas que quebram este silêncio é a minha respiração e o barulho da minha caneta a escrever.

...

Tempos depois Jack disse-me que “HungryCat” tinha sido preso perpetuamente e que Erika tinha-se matado enquanto fugia da polícia. Ao que parece atirou-se de um prédio de dez andares. Devo dizer que fiquei, de certa forma, aliviado com esta notícia.
Uns dias mais tarde vim a saber que Mary Ann, que iria ser a futura mulher de Emílio, estava gravemente doente. Emílio andava a faltar ao trabalho, por isso já não falava com ele havia algum tempo e, obviamente, nada sabia acerca de Mary Ann.
Nesse mesmo dia, ao final da tarde, fui visitá-los. Emílio atendeu-me à porta. Tinha um ar esgotado e gasto. Parecia muito mais velho. Parecia que tinha envelhecido dez anos. Ao princípio não me deixou visitar Mary Ann, mas depois lá cedeu.
Mary Ann estava deitada na cama, pálida. Essa sim, essa tinha um ar bastante esgotado. Estava velha, muito mais velha do que ela era. Apresentava um ar de doença bastante grave.
— O que é que ela têm? — perguntei. — É algo grave?
— É e não é. — disse Emílio — Trata-se de uma gripe asiática.
— Uma gripe asiática? — perguntei, desconfiado — Tu não me fodas Emílio!! Eu sei que a gripe asiática é bastante forte, mas não põem uma pessoa assim.
Emílio chamou-me à parte e fomos até à sala de estar.
— Ela têm é uma gripe asiática.
— Lá estás tu Emílio. Porque é que não me dizes a verdade?
— É o que eu te estou a dizer. Ela está com uma gripe asiática, só que ela não tem anticorpos para a combater.
— Não têm anticorpos? Mas então ela....
— Ela está com SIDA, percebes? Ela está sem mecanismos de defesa. Ela está a morrer...
Devo dizer que fiquei bastante surpreendido com a calma com que Emílio me disse isso. Era preciso ter bastante coragem e força interior para dizer ao seu melhor amigo que aquela que será, ou poderá vir a ser, a sua mulher está a morrer.
Emílio disse-me que estava cansado, trabalhava o dia todo e não parava um segundo. Ou fazia chás, ou cafés, ou estava à beira de Mary Ann a fazer-lhe companhia. Perguntei-lhe se precisava de ajuda e Emílio ficou bastante grato com a proposta. Logo no dia seguinte fui para casa dele ajudá-lo a tratar de Mary Ann.
Essa ajuda demorou pouco tempo, pois poucos dias depois Mary Ann faleceu. Morreu abraçada a Emílio. Emílio demorou algum tempo a recompor-se. Eu queria falar-lhe de um assunto importante, mas nem me atrevi a falar disso nos primeiros tempos.
Poucos meses depois, já Emílio se encontrava recomposto, falei-lhe do assunto que me andava a incomodar.
— Sabes, Emílio, eu acho que devias fazer um teste.
— Um teste de quê?
— Um teste da SIDA. A SIDA pega-se facilmente e a Mary Ann pode ter passado para ti uma carga de vírus.
— Achas? Não sei, nós tivemos poucas relações sexuais e tivemos sempre precauções.
— Mesmo assim deves fazer o teste. Porque se der positivo ainda podes ter a hipótese de te salvares.
— Está bem. Eu vou lá esta semana.
Felizmente o teste deu negativo e libertei-me das preocupações que carregava durante alguns meses.

Morte e Salvação (II)

I


Sento-me aqui, numa tarde de verão, a escrever, lembrando-me do passado. Não sei muito bem onde estou. Sei que estou numa secretária a escrever sozinho, deserto.
Não me lembro muito bem o que se passou antes de ter vindo aqui parar. Lembro-me das coisas passadas já algum tempo atrás. Nem sei que dia é hoje, que horas são, nem em que ano estamos, só sei que estou em pleno verão.
Não sei muito bem porquê, mas só me consigo lembrar de coisas tristes e, raramente, me vem à ideia alguma lembrança de alegria. Terei vivido só de tristeza? Será que não houve nada alegre na minha vida? Porque é que só me lembro de desastres e mortes? Não! Alguma felicidade deve ter havido. Não me consigo lembrar qual, mas deve ter havido. Nem que tenha sido curta.

A primeira coisa que me lembro, da minha infância, é da morte de James. Andávamos no quarto ano da primária, se não me engano. Sei que estávamos a brincar junto a uma linha de comboios. A jogar futebol. Já era tarde, talvez umas 7:00. Estafados, cansados, íamos para casa descansar, mas para irmos para casa tínhamos que atravessar a linha férrea. Primeiro passou Carl, depois foi Jack, depois eu e Mick e, por fim, foi Eddie. James tinha-se atrasado, porque ainda estava a apertar os cordões, que se tinham desapertado durante o jogo. Lembro-me de ver James a correr para nós com a sua mochilinha às costas. A meio da linha deixou cair a mochila. Ficamos assustados, pois vinha um comboio, ao fundo, na trilha onde James tinha deixado cair a mochila.
— Cuidado!!! — gritamos nós — Deixa para lá a mochila.
Mas James nem nos ouviu. Voltou para trás para buscar a mochila. O comboio estava cada vez mais perto. Estava quase a atropelar James quando este saltou para a outra linha, já com a mochila. Azar dos azares!!!! Na outra linha vinha outro comboio, acabado de sair do túnel, em sentido contrário. James foi apanhado pelo segundo comboio, ficando partido em dois. Nem ele nem nós iríamos adivinhar que ia haver ali, naquela zona, justo naquela zona, um cruzamento de comboios.
É claro que se torna impossível explicar o que sentimos naquele momento e o que se passou a seguir. Só me lembro de, passado uns dias, ter ido à missa de enterro de James.
Pessoas, já com alguma idade, a chorar e a berrarem desalmadamente. Lembro-me de ver alguns colegas meus a chorar, a chorar muito. Eu? Eu? Não, eu não chorei. Não verti uma única lágrima. Exteriormente, é claro. Porque interiormente eu sentia-me magoado, perdido, sem saber o que se tinha passado e nem o que estava eu ali a fazer.
Mas depressa esqueci o assunto. Quer dizer, eu não me esqueci do assunto, pois recordo-me perfeitamente o que se passou. Só que não me diz nada. Não mexe comigo.
Engraçado!! Já em criança a morte não me surpreendia.
Recordo-me também dos meus 5º e 6º anos escolares. Era um miúdo sossegado, não muito inteligente, perdido de mim mesmo, sem saber nada de nada. Curiosamente, a cena que recordo claramente desses anos foi quando numa aula de madeiras quase ia matando um professor. Coisa que me valeu três dias de suspensão.
Estava no final do meu quinto ano. As aulas de madeira eram uma completa selva. Salve-se quem puder. Toda a gente andava atarefada a querer fazer tudo mais depressa que os outros.
A meio de uma aula, ouço alguém a chamar-me:
— William! — gritou Stephen — William!
— Diz! — respondi eu. — O que é que queres?
— Tens aí uma serra?
— Tenho!
— Então atira-ma.
Stephen estava a uns 50 metros de mim. Olhei para o professor. Ele não estava a olhar. Ainda bem! Assim não precisava de me levantar para entregar a serra. Virei-me e atirei a serra a Stephen. O professor virou-se entretanto e ZÁS. A serra espetou-se, mesmo em cheio, na anca do professor. O professor caiu ao chão e deu um grito agudo. Os meus colegas entraram em pânico. As raparigas gritavam, berravam e algumas chegaram mesmo a desmaiar. Os rapazes aos berros olhando atentamente para o professor. Eu fiquei completamente aterrado, olhando o professor, sem conseguir dizer uma palavra.
Entretanto, entrou uma funcionária na sala e levou o professor até ao médico da escola, que, mais tarde, o levaria até ao Hospital. Eu e Stephen fomos dirigidos até ao Conselho Directivo, onde nos interrogaram. No final, pediram-me para, no dia seguinte, passar por lá.
No dia seguinte, quando cheguei à escola, recebi a notícia de que o professor tinha levado 4 pontos e iria ficar uma semana no hospital. Dirigi-me ao Conselho Directivo, como me tinham solicitado no dia anterior, e pedi para falar com o presidente. Bati à porta.
— Entre! — disse uma voz lá de dentro.
Entrei. Numa grande secretária castanha estava sentado o presidente do Conselho Directivo, o Sr. Grismy.
— Bom dia, William! — saudou-me Grismy. — Como é que estás? Hoje estás com melhor cara. Ontem apareceste, aqui, branco como a cal.
— Já estou melhor, Sr. Grismy. — respondi eu — Obrigado.
O Sr. Grismy endireitou-se na sua cadeira, acendeu um cigarro e disse:
— Pois bem! Tu ontem fizeste uma coisa muito má. Nós sabemos que foi sem intenção e que nem te passava pela cabeça, a ti e ao teu colega, que aquilo poderia alguma vez acontecer. Mas o certo é que aconteceu e nós, o Conselho Directivo, estivemos, ontem, aqui a conversar até bastante tarde a tentar decidir o que deveríamos fazer. E chegamos a uma conclusão. Agora, eu quero que tu saibas que isto não é um castigo, nem que te estamos a culpar do que aconteceu. O que te vamos fazer é só uma espécie de aviso, para que, o que tu e o teu amigo fizeram, não volte a acontecer, certo?
Eu abanei afirmativamente a cabeça. Perguntei:
— E qual foi a sentença a que chegaram?
O Sr. Grismy sorriu:
— Não lhe chames sentença. Fica muito forte. Até parece que te vão matar. Chama-lhe antes interrupção das aulas, ou melhor, férias forçadas.
— Férias forçadas, Sr. Grismy?
— É um modo mais simpático de dizer suspensão.
— Suspensão? — disse eu, assustado — De quantas semanas?
— Não, não. — riu-se o Sr. Grismy — Não são semanas. Isso é para quem se porta mal. E tu não te portas-te mal, pois não? São só três dias.
— Três dias?
— Sim. Mas não te preocupes, porque não é nada de grave. São só umas curtas férias para que penses bem no que fizeste e para que não voltes a repetir. Agora vai para as aulas.
Levantei-me. Ia a sair quando o Sr. Grismy me chamou:
— William!
— Sim?
— Chame-me, já agora, o seu colega Stephen. Quero falar com ele, também.
— Ele vai ser suspenso?
— Vai, mas não lhe digas nada. Quero ser eu próprio a dar-lhe a notícia.
— Mas, Sr. Grismy, ele não fez nada. Ele está inocente.
— Não. Inocente ele não está. Foi ele que te disse para atirares a serra. Foi dele que veio a ideia. Se calhar se ele não tivesse dito nada, tu não tinhas atirado a serra. Vai. Vai lá chamá-lo.
Foi. Stephen apanhou, também, três dias de suspensão. Coitado. Tive pena dele na altura. O pai dele nunca chegou, nem nunca quis, perceber porque é que o filho foi suspenso. Na cabeça do pai dele a suspensão significa que o aluno se portou mal, ou fez alguma merda que não devia. A suspensão ser um modo de ensinar, de prevenir, ou até como forma de aviso, para que não aconteçam mais acidentes, era demais para a cabeça dele. Por isso toca de bater no miúdo porque este foi suspenso, mesmo não sabendo as razões.
Quando Stephen apareceu, na escola, passado os três dias de suspensão, parecia que tinha passado um autocarro por cima dele. Coitado! Ainda me lembro da carinha tristonha que ele tinha quando voltou para a escola.

II


Encontro-me, aqui, a escrever, sem saber onde estou. Sozinho, deserto, recordo-me do passado. Um passado onde poucas são as recordações alegres. mortes, desastres, sofrimentos, isso tudo pertence à minha vida. A felicidade, a alegria, o entusiasmo, ou passaram-me ao lado, ou, então, não tiveram qualquer significado para mim, pois não me lembro delas.

Por exemplo nos meus 8º e 9º anos escolares. Na altura em que eu acordei de um sono profundo que vinha dormindo há já vários anos. Tenho algumas boas recordações desses anos. É certo que também fiz algumas asneiras, mas isso toda a gente faz.
O 9º ano, principalmente, foi o ano mais incrível para a minha turma. Era uma turma bastante unida. Quando um tinha problemas, os outros ajudavam. E se um fazia asneiras, os outros também faziam, aliás, estávamos sempre a fazer asneiras. As empregadas da escola nem nos podiam ver à frente. Se havia qualquer problema na escola as primeiras suspeitas caiam na nossa turma.
Só tínhamos um pequeno problema: é que a escola ficava situada no centro de um bairro, que era muito mal frequentado. Brigas, lutas, pancadarias, boxe ao ar livre, eram frequentes naquela escola. Era raro o dia em que não houvesse, à hora do almoço, uma grande espera, à porta da escola, com paus, navalhas, facas e até armas. Era muito perigoso ir para aquela escola. Não nos podíamos meter com ninguém na rua, se não, corríamos o risco de levar com uma navalha.
Recordo um dia em que Michael teve a infelicidade de se meter com um cigano da zona. Nós tinhamo-lo avisado de que era perigoso meter-se com as pessoas que iam a passar na rua, podia passar alguém do bairro e aí haveria sérios problemas. Mas ele não nos quis ouvir. Um dia lá teve a infelicidade de acertar com um apagador num cigano. Ainda por cima num cigano. Claro, é fácil de prever o que aconteceu a seguir. 43 gajos armados até aos dentes com pedras, facas e navalhas à porta da escola à espera do «gadjo que acertou no Piquito». Ninguém conseguiu sair da escola. Os empregados não deixavam. Era ao ultimo tempo da tarde, toda a gente queria ir para casa.
Michael tremia por todos os lados, estava escondido no bufete, que se situava na parte de trás da escola.
— Eles vão-me matar, William. — disse Michael, a chorar — Eu não quero morrer. Chama a polícia. Por favor!!!
— Tem calma. — disse eu — Tudo se resolve! Descansa que ninguém te vai matar.
Dirigi-me até porta onde estava o pessoal todo ensalsichado, implorando para sair. Perguntei ao Sr. Rosenberg se já tinham chamado a polícia.
— Já, meu filho! — disse o Sr. Rosenberg — Já lhes telefonei à um quarto de hora. Devem estar aí a chegar.
Pois sim!! Só passado meia hora é que apareceu a polícia e, ao princípio, os ânimos não acalmaram, muito pelo contrário, pioraram. Mas depois a polícia conseguiu dominar a situação e nós pudemos sair, com segurança, da escola. Michael foi para casa num carro da polícia, para evitar qualquer ataque, ou perseguição, por parte dos ciganos.
Tudo voltou, depois, à normalidade. Já ninguém se lembrava do assunto, até um dia. Tinha passado mais ao menos um mês. Michael estava a faltar. Estávamos a ter aulas com a nossa Directora de Turma, a professora de Matemática, quando uma empregada bateu à porta.
— Entre. — disse a professora — A porta está aberta.
A empregada entrou olhou para nós de soslaio e disse:
— Sr.ª Doutora, estão a chama-la ao telefone. Parece que é da polícia.
A professora saiu esbaforida da sala. Nós ficamos mudos, olhando uns para os outros. Passado um quarto de hora a professora entrou na sala a chorar.
— Era, — disse a professora, aos soluços — efectivamente, da polícia a dizer que o aluno Michael Grain tinha sido encontrado morto, esfaqueado, a poucos metros da escola. O principal culpado já foi apanhado. O funeral é daqui a uns dias.
Toda a turma ficou imóvel, estática, muda, sem dizer uma palavra. Choravam todos em silêncio. Alguns, como eu, nem chegaram a chorar, limitaram-se a olhar pensativamente para o infinito.
Desta vez não fui ao funeral. A escola era para fechar no dia do funeral, mas os professores não deixaram, porque assim ninguém, ou quase ninguém, ia ao funeral. Achavam que nós éramos demasiado jovens para assistir a uma carga emocional daquele tamanho. Mesmo assim fomos obrigados a fazer um minuto de silêncio, em todas as disciplinas.
Poucos meses depois acabou a escola e depressa esqueci aquele incidente.

...

Está a escurecer. Acendo duas velas para continuar e escrever. Um silêncio profundo rodeia-me, o único barulho é o da minha caneta a escrever. Gostava de saber onde estou. O que é que aconteceu? Tento recordar-me, mas só me lembro de coisas antigas. O que hei-de eu fazer? Só me resta escrever aquilo que vou recordando, talvez, assim, me lembre do que aconteceu antes de eu ter vindo para aqui.

...

Julie!!! Sim, lembro-me perfeitamente de ti. Os teus cabelos castanhos caindo pelos ombros, os teus olhos azuis, profundos e tristes olhando para o infinito, a tua boca desejosa de um beijo. Ahhh! Julie! Como sinto a tua falta.
Conheci-te no 11º ano. Andavas tu perdida no mundo e vieste-me pedir ajuda. Não nos conhecíamos, mas mal te vi senti uma forte sensação que nunca consegui explicar. Cruzavamo-nos muitas vezes nos corredores da escola, falávamos de vez em quando nos intervalos. Um dia vieste ter comigo a pedir ajuda. Não sabias o que fazer e eu ajudei-te. A partir desse dia a nossa vida nunca mais foi a mesma. Sim, acho que valeu a pena ter vivido só para ter passado aqueles maravilhosos momentos contigo. Foram raras as vezes em que nós nos zangámos. Raras eram as vezes em que estávamos tristes. Toda a nossa vida foi vivida em conjunto.
Mais tarde viríamos a casar. Tal como toda a gente faz, também nós fizemos a despedida de solteiro. Lembro-me, como se fosse ontem, da minha despedida de solteiro. Convidei todos os meus amigos e algumas amigas. Tínhamos reservado um bar só para nós. Eram 10 horas da noite quando a festa começou. Bebidas, comidas, coktails, digestivos, aperitivos, e muito mais. Nada faltava, até droga lá havia. Já a noite ia alta quando Miles começou a sentir-se mal. O pessoal já estava tão bêbado e pedrado que nem ligou muito ao assunto. Jack e eu ficamos preocupados com Miles e fomos com ele até à porta do bar apanhar ar. Passado uns minutos Miles desmaiou. Mandei imediatamente chamar uma ambulância, mas nem por eu ter dito que era uma emergência, a ambulância não veio mais depressa. Demorou três quartos de horas a chegar. Já Miles parecia um morto.
Seguimos, todos, a ambulância até ao hospital. No Hospital só deixavam entrar duas pessoas. Entrei eu e Jack.
Estivemos lá até às 8:30 da manhã. Miles estava em coma profundo com uma overdose. Telefonei a Julie, explicando o que se tinha sucedido. Chegamos mesmo a pensar em mudar a data do casamento, mas não mudamos. Por isso às 15:30 começou a missa.
Eram quase 17:00, quando saímos da igreja. Dirigimo-nos até ao restaurante onde se ia realizar o copo de água. A festa durou até às 3:00 do dia seguinte. Estava eu a arrumar as minhas coisas, quando Jack veio ter comigo.
— William. — disse Jack branco como a cal — Tens uma chamada para ti do hospital.
Empalideci. Fiquei imóvel durante uns segundos, receando o pior. De repente, corri para o telefone. Sim, era verdade Miles tinha morrido.
Tinha acabado de desligar o telefone quando Jack me perguntou:
— Então? O que era? Fala. Diz alguma coisa. O que é que aconteceu com Miles?
— Miles morreu, Jack. — disse eu, ainda confuso — Overdose. Morreu à dez minutos atrás.
— Mas..... — disse Julie, aterrada — Mas isso é terrível.
— Sim, é terrível. — disse eu — Mas foi o futuro que ele escolheu. Foi o rumo que ele seguiu. Foi ele que quis assim. Nunca nos deu ouvidos.
Não disse mais nada, virei costas e continuei a arrumar as minhas coisas. Despedi-me de Jack e, juntamente com Julie, fomos para nossa casa. Acho que nunca ninguém teve uma noite de núpcias como a nossa. O nosso casamento começava bem....
No dia seguinte recebemos a notícia de que Vincent e Tom tinham também entrado no hospital, mas com uma coma alcoólica. Felizmente já estava tudo bem e nenhum deles corria perigo. Julie e eu decidimos que deveríamos ir para Lua de Mel o mais cedo possível. Queríamos abstrair-nos de tudo o que estava a acontecer à nossa volta. Queríamos estar sós, sem que ninguém nos chateasse.

Já está escuro. Quase não vejo o que estou a escrever. Acho que vou dormir. É engraçado, mas não se ouve qualquer ruído. Onde estarei eu? Que estarei eu a fazer? Porque será que me dá para escrever tudo o que me lembro? O que será que aconteceu?

III


Acordo! Olho à minha volta e só vejo o deserto. Sinto-me só. O sol já vai alto, devem ser mais ou menos onze horas. Vou dar uma volta para ver se vejo alguma coisa. Vaguei-o, vaguei-o e nada. Não encontro ninguém, mas ontem à noite pareceu-me ter ouvido música para estes lados. Onde estarei eu? Não sei. Volto para a minha secretária. Agora me lembro: o que faz uma secretária no meio deste deserto? Tantas perguntas e nenhumas respostas.

Quando andava no secundário, eu fazia muito desporto e andava sempre em jogos. O jogo que me terá marcado mais nessa época, foi com certeza a final das Inter-Escolas de Futebol. Andava eu no 12º ano. A minha equipa era: O Mark como guarda-redes; o Jimmy e o Richard à defesa; o John a meio campo; o Jack e eu a avançados. Recordo que faltavam dez minutos para acabar o jogo e estávamos empatados 2-2. Os adversários só davam porrada, não sabiam jogar sem dar um pontapé ou um soco a alguém, por isso já havia alguns lesionadas na nossa equipa. John coxeava, Richard sangrava da perna e do nariz e Jimmy tinha sido substituído por Charles, devido a ter fracturado o pulso.
De repente o avançado nº5 dos adversários ia isolado para a baliza, Richard tenta tirar-lhe a bola, mas não consegue. Charles foi a correr e para lhe tirar a bola foi-lhe directo aos pés. O nº5 caiu, deu duas cambalhotas no chão e foi a escorregar até bater com a cabeça no poste da nossa baliza. Levantou-se, quase de seguida, e disse que estava tudo bem. O pessoal estava completamente aterrorizado desviando o olhar, ele tinha a cabeça totalmente aberta e o sangue escorria por todos os lados. Ele sem dar conta do seu estado perguntou:
— O que é que se passa? Eu estou bem, só estou um pouco tonto, mais nada.
Pouco depois caiu para o lado, desmaiou.
Corri a chamar uma ambulância. Uns minutos depois lá apareceu a ambulância e levou o jogador para o hospital. Vim a descobrir mais tarde que o jogador chamava-se Raúl e que tinha vindo da América Latina. Fui visitá-lo duas semanas depois do acontecido. Quando entrei o médico ainda estava no quarto a examiná-lo.
— Boa tarde! — disse eu em voz baixa — Como se encontra o Raúl.
— Boa tarde! — disse o médico — O Raúl teve sorte, sabes? Teve sorte porque não perdeu nenhuma massa encefálica, por isso não deve correr grandes riscos. Mas ele tem uma grande fractura cerebral, o que pode levar a um traumatismo bastante profundo. Ele, por enquanto, não pode falar, mas pode ouvir. Queres ficar a falar um bocado com ele?
— Se não se importar...
O médico saiu da sala, deixando-me sozinho com Raúl. Fiquei um bom bocado a conversar com ele. Ele, como não podia falar, respondia-me com acenos ou com gestos.
Dois meses depois Raúl saiu do hospital. Mas nunca mais foi o mesmo, tinha um traumatismo craniano muito profundo. Não se percebia o que ele dizia e nunca mais conseguiu andar direito. Tinha ido visitá-lo a casa. Devo dizer que fiquei bastante impressionado com o que vi. O que te fizeram, Raúl? O que é que te aconteceu? Eras um rapaz tão jovem, tão novo e de um momento para o outro ficaste perdido para sempre. Sim, Raúl, tive pena de ti, tive bastante pena de ti, embora não te conhecesse de lado nenhum.

...

Está calor. Um calor abrasador. Tiro a camisa, fico só em T-Shirt. Relembro ainda Raúl e o seu acidente. Não ouço um único barulho à minha volta. Sinto uma vontade irresistível de escrever à medida que me vou lembrando do passado. Ainda não sei onde estou, mas tenho uma leve impressão de que se continuar a escrever, vou-me lembrar do que aconteceu e como vim aqui parar.

...

Acabado o 12º ano, eu, Julie e Jack, fomos para a faculdade. Esses anos foram muito maçadores. As aulas eram chatas, não se fazia nada de excitante e tínhamos muito pouco tempo disponível. Lembro-me de, a meio do quarto e último ano, pouco antes do meu casamento com Julie, ter havido um torneio de futebol académico. A minha equipa tinha chegado à final. Na final tivemos que jogar com outra faculdade. Por azar as duas faculdades eram rivais, o que tornou o jogo muito competitivo e com muitas faltas.
Tinham só decorrido dez minutos e já tínhamos mais de metade da equipa lesionada. Eu tive de sair devido a uma grave lesão na perna esquerda, mas fiquei sentado no banco, junto ao treinador, a ver o jogo. Estávamos quase no intervalo quando os adversários atacam. Joseph, nosso guarda-redes, partiu em direcção à bola, atirou-se para cima do adversário e, ao cair, partiu uma perna. Eu tive de entrar outra vez em campo, porque já não tínhamos mais suplentes no banco, e substitui Joseph na baliza.
A segunda parte do jogo teve menos faltas. Lembro-me de olhar para o placar e ver que faltavam quinze minutos para acabar o jogo, olhei em frente e vi Tom a atacar. «Vai dar golo», pensei eu. Tom passou para Jerry, este foi direito à baliza, mas um defesa adversário tapou-lhe a jogada com um empurrão, Jerry caiu e foi a escorregar até ao poste esquerdo da baliza, onde bateu fortemente com as costas. O árbitro apitou para pénalti. Foi o descalabro total, os jogadores pegaram-se todos à pancada e os treinadores corriam atrás do arbitro para lhe foder o focinho. Eu fui ter com Jerry e perguntei-lhe se estava bem.
— Eu estou bem, — disse Jerry — só que não me consigo mexer.
Fiz um sinal ao médico e ele veio logo a correr. Examinou Jerry de alto a baixo, afastou-se um bocado e chamou-me. Fui.
— Ele tem a coluna partida. — disse o médico com um ar bastante sério — Temos de levá-lo urgentemente para o hospital, pode ser que ainda se salve de ficar paralítico.
Um quarto de hora depois, chegou a ambulância. Os jogadores continuavam todos à pancada e os enfermeiros tiveram de passar pelo meio deles. Pousaram Jerry na maca e rapidamente poseram-no na ambulância. Eu fui chamar Jack a casa.
— Jack!! — disse eu, mal Jack abriu a porta de casa — Anda comigo até ao hospital. O Jerry ficou gravemente ferido durante o jogo.
— Mas.... — disse Jack, aterrorizado — Mas o que é que ele tem? O que é que lhe aconteceu?
— Anda embora. — disse eu, apressado — Conto-te tudo pelo caminho.
Jack vestiu o casaco e entrou no meu carro. Pelo caminho fui-lhe explicando tudo o que tinha acontecido. Quando chegamos ao hospital, mandaram-nos esperar numa salinha apertada. Passado poucos minutos um médico veio ter comigo.
— É o Sr. William McGrow? — perguntou-me ele.
— Sou. — respondi eu, enquanto me levantava — Como está o Jerry?
— O Jerry está neste momento a ser examinado. — disse o médico — Ele partiu a coluna e fracturou mais alguns ossos. Mas as probabilidades de ele voltar a andar são muito reduzidas.
— Mas ele vai ficar totalmente paralítico? — perguntou Jack — Ou há possibilidades de ele se mexer em outras partes do corpo?
— É exactamente isso que estamos a ver. Ele deve ficar paralisado da cintura para baixo. Agora vamos ver se conseguimos salvá-lo da cintura para cima.
O médico retirou-se. Acendi um cigarro e fiquei à espera de mais notícias, Jack foi telefonar para casa de Jerry a informar a família do sucedido. Passado meia hora o médico voltou a aparecer.
— Tal como eu vos tinha dito, — disse ele, com um ar sério — o Jerry só ficou paralisado da cintura para baixo, de resto pode movimentar todos os membros.
— Então, quer dizer que.... — disse eu, hesitando — ...que ele vai ter que andar de cadeira de rodas para o resto da vida?
O médico olhou para mim, olhou para Jack e disse:
— Infelizmente sim.
— Podemos visitá-lo? — perguntou Jack.
— Claro que sim ele está no quarto 432.
Fomos até ao quarto e quando chegamos Jerry estava na cama ainda inconsciente.
— Ele deve estar quase a acordar. — disse o médico — O efeito da anastesia dura pouco tempo.
Efectivamente, passado pouco tempo Jerry acordou.
— Bem, — disse o médico — se me permitem eu vou-me retirar.
— Com certeza. — disse eu — Muito obrigado pela sua ajuda.
Eu e Jack ficamos um bocado a falar com Jerry. Quando íamos a sair, estavam a chegar o pai e a mãe. Tivemos um bocado a falar à porta do hospital. Parece incrível que a universidade não os tivesse contactado, eles só souberam o sucedido quando Jack lhes telefonou.
Durante quase um mês Jerry não apareceu na universidade. Eu abandonei o desporto, tinha acontecido muita coisa, Raúl tinha ficado incapacitado de pensar e mal conseguia falar e depois foi Jerry que ficou paralítico.